DIRETRIZES GERAIS DA AÇÃO EVANGELIZADORA DA IGREJA NO BRASIL 2011 – 2015

04/11/2012 12:25

 

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 49ª Assembleia Geral

APARECIDA-SP, 4 A 13 DE MAIO DE 2010

 

DIRETRIZES GERAIS DA AÇÃO

EVANGELIZADORA DA IGREJA NO BRASIL

2011 – 2015

Jesus Cristo, “Caminho, Verdade e Vida” ( Jo 14, 6)

 
TEXTO APROVADO
 
SUMÁRIO
OBJETIVO GERAL ...................................................................................................... 
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 
I - PARTIR DE JESUS CRISTO ................................................................................... 
II - MARCAS DE NOSSO TEMPO ................................................................................
III - URGÊNCIAS NA AÇÃO EVANGELIZADORA ...................................................... 
3.1. Igreja em estado permanente de missão ........................................................ 
3.2. Igreja: casa da iniciação à vida cristã ............................................................. 
3.3. Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral .................................. 
3.4. Igreja: comunidade de comunidades .............................................................. 
3.5. Igreja a serviço da vida plena para todos ....................................................... 
IV - PERSPECTIVAS DE AÇÃO ..................................................................................
4.1. Igreja em permanente estado de missão ........................................................ 
4.2. Igreja: casa da iniciação à vida cristã .............................................................
4.3. Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral .................................. 
4.4. Igreja: comunidade de comunidades ..............................................................
4.5. Igreja a serviço da vida plena para todos ....................................................... 
V - INDICAÇÕES DE OPERACIONALIZAÇÃO ........................................................... 
5.1. O plano como fruto de um processo de planejamento ................................... 
5.2. Passos metodológicos ................................................................................... 
CONCLUSÃO: COMPROMISSO DE UNIDADE NA MISSÃO ..................................... 
SIGLAS ........................................................................................................................
 
OBJETIVO GERAL
Evangelizar, a partir de Jesus Cristo e na força do Espírito Santo, como Igreja discípula, missionária e profética, alimentada pela Palavra de Deus e pela Eucaristia, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, para que todos tenham vida (Jo 10,10), rumo ao Reino definitivo.
INTRODUÇÃO
1. Fiel a Jesus Cristo, ao Verbo de Deus, missionário do Pai (Jo 5,37; Jo 20,21), que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14), a Igreja no Brasil, ao mesmo tempo em que escuta e acolhe a voz do Espírito Santo, reafirma a importância de conhecer a realidade e de traçar metas específicas para a ação evangelizadora à luz da Sagrada Escritura e da Tradição1. Desde o Plano de Emergência 2, a Igreja no Brasil não interrompeu o rico processo de planejamento pastoral, elaborando diretrizes e planos, tendo em vista corresponder melhor à ação do Espírito numa realidade em constante transformação. Deseja, mais uma vez, contemplar o cotidiano do povo brasileiro, notadamente dos mais sofridos, voltar às fontes desta mesma fé e indicar caminhos a serem trilhados.
2. Diretrizes são rumos que indicam o caminho a seguir, abordando aspectos prioritários da ação evangelizadora, princípios norteadores e urgências irrenunciáveis. Os planos de pastoral das Igrejas Particulares percorrem um roteiro específico, contendo estudo e iluminação da realidade à luz da fé, objetivos, critérios e meios para a sua concretização na própria realidade. Realizar planos é uma tarefa que cabe às Comissões Pastorais e às Igrejas Particulares, com suas paróquias, comunidades, organismos, movimentos leigos, Institutos de Vida Consagrada, em suma, todos os agentes de pastoral. Na interação entre as diretrizes e os planos, o Objetivo Geral é assumido por todos os Bispos do Brasil em suas Igrejas Particulares, preservando-se a unidade e a diversidade.
1 Cf. VB 17, 18 e 35
2 5ª AGO, 1962. Re-edição: Documento 76.
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3. A Igreja no Brasil, iluminada pela Conferência de Aparecida e celebrando o cinquentenário do Concílio Vaticano II, louva e bendiz o Deus da Vida, do Amor e da Paz, pela tradição em planejar a ação evangelizadora. Ergue um canto de louvor por todas as pessoas que, nas mais diversas formas de viver a fé, levam adiante o anúncio do Reino de Deus, concretizando os planejamentos e suscitando novas propostas, algumas vezes, na satisfação de vê-las realizadas, outras no martírio que decorre da fidelidade ao Evangelho. Louva a Deus pela Palavra anunciada, a Eucaristia celebrada, a solidariedade concretizada, a vida defendida, o amor compartilhado, a unidade fortalecida e a fraternidade testemunhada. Eleva um canto de gratidão pelas inúmeras e diversificadas formas de viver a dimensão comunitária, sem as quais planejamento algum pode se concretizar. Curva-se perante o Deus de Misericórdia, pedindo perdão pelas fraquezas, infidelidades e pecados de seus membros e implorando forças para viver sempre mais intensamente o discipulado-missionário que decorre do encontro com Jesus Cristo, alimentado pela Palavra de Deus e os Sacramentos. Clama pela firmeza indispensável para superar uma concepção de fé restrita a um conjunto de práticas religiosas fragmentadas, adesões parciais e participação ocasional 3. Reza, enfim, para que, através destas Diretrizes e do empenho de todos, se supere o “medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas, na verdade, a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez”4.
3 Cf DAp 12.
4 DAp 12, citando: RATZINGER, J. Situação atual da fé e da teologia. Conferência pronunciada no Encontro de Presidentes de Comissões Episcopais da América Latina para a Doutrina da fé, celebrado em Guadalajara, México, 1996. Publicado em L’Osservatore Romano, em 1 de novembro de 1996.
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I
PARTIR DE JESUS CRISTO
4. Toda ação eclesial brota de Jesus Cristo e se volta para Ele e seu o Reino do Pai. Jesus Cristo é nossa razão de ser, origem de nosso agir, motivo de nosso pensar e sentir. Nele, com Ele e a partir d‟Ele mergulhamos no mistério trinitário, construindo nossa vida pessoal e comunitária. Nisto se manifesta nosso discipulado-missionário: contemplamos Jesus Cristo presente e atuante em meio à realidade, compreendemos a realidade à sua luz e com ela nos relacionamos no firme desejo de que nosso olhar, ser e agir sejam reflexos do seguimento cada vez mais fiel ao Senhor Jesus. Não há, pois, como executar planejamentos pastorais sem antes pararmos e nos colocarmos diante de Jesus Cristo. Em atitude orante, contemplativa, fraterna e servidora, somos convocados a responder, antes de tudo a nós mesmos: quem é Jesus Cristo? (Mc 8,27-29). O que significa acolhê-lo, segui-lo e anunciá-lo? O que há em Jesus Cristo que desperta nosso fascínio, faz arder nosso coração (Lc 24,32), leva-nos a tudo deixar (Lc 5,8-11) e, mesmo diante das nossas limitações e vicissitudes, afirmar um incondicional amor a Ele (Jo 21,9-17)? A paixão por Jesus Cristo leva ao arrependimento, à contrição (Lc 24,47; At 2,36ss) e à verdadeira conversão pessoal e pastoral. Por isso, devemos sempre nos perguntar: estamos convencidos de que Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida? O que significa para nós, hoje, o Reino de Deus por Ele instaurado e comunicado?
5. A Conferência de Aparecida, marco referencial para a Igreja na América Latina e no Caribe, na esteira do cinquentenario de abertura do Concílio Vaticano II (1962) nos convida a olhar com atenção para Aquele que, sendo rico, se fez pobre para a todos enriquecer (2 Cor 8,9) 5. O discípulo missionário, ao contemplar Jesus Cristo descobre o Verbo que arma sua tenda entre nós, o Filho único do Pai, cheio de amor e fidelidade (Jo 1,14); aquele que, sendo de condição divina, não se fecha em si mesmo, mas se esvazia até a morte e morte de cruz (cf. Filip 2,5ss) e, à diferença das aves do céu e das raposas, não tem sequer onde reclinar a cabeça (Mt 8,20). Ele sempre precisa ir a outros locais (Lc 4,43) para anunciar o Reino, a graça, a justiça e a reconciliação. Ele se preocupa com as ovelhas que não fazem parte do rebanho (Jo 10,16), nem que seja uma única ovelha perdida, sofrida (Lc 15,4-7), para reanimá-las diante da dor e da
5 DI 3, DAp 31; BENTO XVI, Encíclica Deus Charitas est, 1.
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desesperança (Lc 24,13-35). É este mesmo Jesus que virá, um dia, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos (Mt 25,31-46).
6. A recente Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini proclama com toda clareza que Deus nos fala, se comunica conosco por meio de sua palavra que é Jesus Cristo, Verbo feito carne. “Como nos mostra claramente o Prólogo de João, o Logos indica originariamente o Verbo eterno, ou seja, o filho unigênito, gerado pelo Pai antes de todos os séculos e consubstancial a Ele: o Verbo estava junto de Deus, o Verbo era Deus. Mas este mesmo Verbo – afirma São João – „fez-se carne‟ (Jo 1,14); por isso Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, é realmente o Verbo de Deus que Se fez consubstancial a nós. Assim a expressão „Palavra de Deus‟ acaba por indicar aqui a pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai feito homem” 6
7. Jesus Cristo é Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, manifestação plena do amor radical, que se entrega, pelos pecadores (Rm 5,8). Seu desejo de salvação não é simplesmente aguardar os que O buscam. Jesus Cristo é incessante e eterna entrega, dom de si para o outro. É contínuo convite aos discípulos missionários e, por meio deles, a toda a humanidade para segui-lo, em meio às diferenças e desencontros. O encontro com Jesus Cristo é acolhimento da graça do Pai, que, pela força do Espírito, revela o Salvador e atua, no coração de cada pessoa, possibilitando-lhe esta resposta.
8. As atitudes de alteridade e a gratuidade marcam a vida do discípulo missionário de todos os tempos. Alteridade se refere ao outro, ao próximo, àquele que, em Jesus Cristo, é meu irmão ou minha irmã, mesmo estando do outro lado do planeta 7 É o reconhecimento que o outro é diferente de mim e esta diferença nos distingue, mas não nos afasta. As diferenças nos atraem e complementam, convidando ao respeito mútuo, ao encontro, ao diálogo, à partilha e ao intercâmbio de vida e a solidariedade. Fechar-se no isolamento, no individualismo e em atitudes que transformam pessoas em mercadorias é cair no pecado da idolatria e semear infelicidade. A vida só se ganha na entrega, na doação. “Quem quiser perder a sua vida por causa de mim a encontrará!” (Mt 10,39).
9. Todo relacionamento é igualmente chamado a acontecer na gratuidade. À semelhança de Cristo Jesus que, saindo de si, foi ao encontro dos outros, nada esperando em troca (Fl 2,5ss), também o discípulo missionário é chamado a profeticamente questionar, através de suas escolhas e atitudes, um mundo que se constrói a partir da mentalidade do lucro e do mercado, não esquecendo que tais atitudes geram violência, vingança, guerra e destruição (Mt 6,24). Gratuidade
6 VD 6
7 cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, 43.
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significa amar, em Jesus Cristo, o irmão e a irmã, respondendo, através de atitudes fraternas e solidárias à grande questão proposta a Jesus: “quem é o meu próximo?” (Lc 10,29), querendo e fazendo bem ao outro sem nada esperar em troca. Significa cortar a raiz mais profunda da violência, da exclusão, da exploração e de toda discórdia.
10. Gratuidade e alteridade, como expressões do Amor, são fontes de paz, reconciliação e fraternidade. São sementes da atitude cristã mais radical: o perdão (Lc 23,34), atitude que deve ser incessantemente testemunhada e transmitida (Mt 18,21-22) a um mundo que se caracteriza pelo crescimento da vingança e da violência como soluções às dores da vida. A radicalidade do Amor de Deus atinge sua extrema manifestação no amor aos inimigos. A reconciliação é o ápice da Nova-Lei. Supera toda divisão que nos afasta de Deus e nos separa uns dos outros. O discípulo missionário, ao contemplar Jesus Cristo – e Cristo Crucificado! – reconhece que a loucura e o escândalo (1 Cor 1,18.21) do Reino de Deus chegam ao seu ápice na reconciliação. (Rm 5,6-8; Lc 23,34).
11. Por certo, a ação evangelizadora e pastoral da Igreja trabalhar pela reconciliação, o que não significa pactuar com a impunidade, a corrupção e todas as formas de desrespeito aos direitos básicos de toda pessoa. Diante de graves situações que fazem sofrer os irmãos, o coração do discípulo missionário se enche de compaixão e clama por justiça e paz. Angustia-se diante da inércia e mesmo da omissão. Quer atitudes que superem o mal existente e não permitam o surgimento de mais dor. Esta indignação, porém, não deve afastar o discípulo missionário do ideal de perdão e reconciliação, pois o Reino de Deus só acontece efetivamente quando se responde ao mal com o bem (Rm 12,17-21).
12. Gratuidade e alteridade são, portanto, modos de compreender o que há de mais decisivo em Jesus Cristo: a saída de si, rumo à humanidade marcada pelo pecado, fonte de dor e morte. Jesus nos mostrou que não se vence o pecado pelo pecado (Lc 11,14-22). Este é vencido pela graça derramada abundantemente nos corações dos discípulos missionários. e a A atuação da graça é paz, justiça, bondade, reconciliação, gratuidade e alteridade (Gl 5,22). É, pois, motivado pela atitude de constante ida ao encontro do outro que o discípulo missionário contempla a realidade, não desejando que ela se encaixe em suas expectativas, mas encarnando-se na realidade, discernindo a presença do Reino de Deus e trabalhando para que ele cresça cada vez mais. Jesus nos amou até o fim! A fidelidade é uma das maiores provas do amor. Num mundo onde tudo é descartável - até mesmo as pessoas - o compromisso fiel torna-se uma das características fundamentais do(a) discípulo(a) missionário(a) (cf. Hb 10,38).
13. O discípulo missionário sabe que não exerce esta sublime missão isoladamente. Ao contrário, ele a exerce na Igreja, grande comunidade de todos os discípulos missionários, novo povo de Deus,
8
conclamado para reunir-se na fraternidade, acolher a Palavra, celebrar os sacramentos e sair em missão, no testemunho, na solidariedade e no claro anúncio da pessoa e da mensagem de Jesus Cristo. Mesmo quando se encontra sozinho em meio a quem não se compromete com os valores do Reino de Deus, o discípulo missionário está unido a toda Igreja. Sabe que, no mistério do Deus-Comunhão, ele será sempre um irmão entre irmãos.
14. Cristo Cabeça remete necessariamente à Igreja-Corpo (Cl 1,18). Não há como ser verdadeiro discípulo missionário sem o vínculo efetivo e afetivo com a comunidade dos que descobriram fascínio pelo mesmo Senhor 8. Na Igreja, o discípulo missionário percebe a força de uma união que ultrapassa raças, condições econômico-sociais, preconceitos, discriminações (Gl. 3,28) e tudo mais que, de algum modo, tenda mais a separar do que a unir. Chamada a ser na terra, sinal do Deus-Amor, do Deus-Comunhão, do Deus-Trindade, a Igreja encontra sua razão de ser na vivência e no anúncio do Reino de Deus (LG 1). A unidade de todos os discípulos missionários, em meio à diversidade de dons, serviços, carismas e ministérios (LG 9-13), testemunha o amor trinitário do Pai, pelo Filho, no Espírito. Ao testemunhá-lo, interpela todas as formas de desfiguração humana, tais como discriminação, exclusão, exploração, separação, opressão, escravidão, manipulação, protecionismo, injustiça e ausência de reconciliação.
15. Nestes tempos de agudo apelo ao individualismo hedonista e de fortíssimo consumismo, deparamo-nos com o surgimento de propostas religiosas que dizem oferecer o encontro com Deus sem o efetivo compromisso cristão, e a formação de comunidade. Desaparece, então, a imagem do Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, cujo zelo por suas criaturas é atento com as aves do céu, os lírios do campo ou com um único fio de cabelo (Lc 21,18). Surge a imagem do Deus da troca, do negócio, dando a impressão de que Ele se encontra mais preocupado com o que pode lucrar através dos pedidos e reivindicações, notadamente dos que sofrem. Em tudo isso, o discípulo missionário reconhece que não pode existir caminho para o Deus revelado em e por Jesus Cristo, se não houver amor (1 Jo 4,7.20-21). O discípulo missionário sempre desconfiará (1 Jo 4,1) das propostas religiosas que não brotem do amor nem levem a ele.
16. Viver, pois, o encontro com Jesus Cristo implica necessariamente amor, gratuidade, alteridade, unidade, eclesialidade, fidelidade, perdão e reconciliação. Torna o discípulo missionário firmemente enraizado e edificado em Cristo Jesus (Ef 3,17; Cl 2,7), à semelhança da casa que se constrói sobre a rocha (Mt 7,24-27). E, assim, cada discípulo missionário, junto com toda a Igreja, comunidade dos discípulos missionários, torna-se fonte de paz, justiça, concórdia e solidariedade. Significa contemplar Jesus Cristo em constante atitude de saída de si, de desprendimento e esvaziamento. Significa acolher o mistério divino como contínuo transbordar do amor do Pai pelo
8 EN 16.
9
Filho, no Espírito. Implica diálogo, unidade na diversidade, partilha, compreensão, tolerância, respeito, reconciliação e, conseqüentemente, missão.
II
MARCAS DE NOSSO TEMPO
17. O discípulo missionário sabe que, para efetivamente anunciar o Evangelho, deve conhecer a realidade à sua volta e nela mergulhar com o olhar da fé, em atitude de discernimento. Como o Filho de Deus assumiu a condição humana, exceto o pecado nascendo e vivendo em determinado povo e realidade histórica (Cf. Lc 2,1-2), nós, como discípulos missionários, anunciamos os valores do Evangelho do Reino na realidade que nos cerca à luz da Pessoa, da Vida e Palavra de Jesus Cristo, Senhor e Salvador.
18. O Concílio Vaticano II nos conclama a considerar atentamente a realidade, para nela viver e testemunhar nossa fé, solidários a todos, especialmente aos mais pobres. Sabemos, porém, que nem sempre é fácil compreender a realidade. Ela é sempre mais complexa do que podemos imaginar. Nela existem luzes e sombras, alegrias e preocupações 9. Daí a contínua atitude de diálogo, de evangélica visão crítica, na busca de elementos comuns que permitam, em meio à diversidade de compreensões, estabelecer fundamentos para a ação.
19. A Conferência de Aparecida nos oferece rica indicação 10, ao recordar que vivemos um tempo de transformações profundas, que afetam não apenas este ou aquele aspecto da realidade, mas a realidade como um todo, chegando aos critérios de compreensão e julgamento da vida. Estamos diante de uma globalização que não é apenas geográfica, no sentido de atingir todos os recantos do planeta. Estamos, na verdade, diante de transformações que atingem também todos os setores da vida humana, de modo que já não vivemos uma “época de mudanças, mas uma mudança de época” 11. O que antes era certeza, até bem pouco tempo servindo como referência para viver, tem se mostrado insuficiente para responder a situações novas, “deixando as pessoas estressadas ou desnorteadas” 12.
9 DGAE 2008-2010, 12. cf GS 1.
10 DAp 33-100 e DGAE 2008-2010 12-46.
11 DGAE 2088-2010, 13.
12 DGAE 2088-2010, 21.
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20. Mudanças de época são, de fato, tempos desnorteadores, pois afetam os critérios de compreensão, os valores mais profundos a partir dos quais se afirmam identidades e se estabelecem ações e relações. Várias atitudes podem, então, surgir nestes períodos históricos. Duas, no entanto, se destacam. De um lado, é o agudo relativismo, próprio de quem, não devidamente enraizado, oscila entre as inúmeras possibilidades oferecidas. De outro, são os fundamentalismos, que, fechando-se em determinados aspectos, não consideram a pluralidade e o caráter histórico da realidade como um todo. Estas duas atitudes se desdobram em outras tantas, como, por exemplo, o laicismo militante, com posturas fortes contra a Igreja e a Verdade do Evangelho, a irracionalidade da chamada cultura midiática, o amoralismo generalizado, atitudes de desrespeito diante do povo e um projeto de nação que nem sempre considera adequadamente os anseios deste mesmo povo.
21. Os critérios que regem as leis do mercado, do lucro e dos bens materiais regulam também as relações humanas, familiares e sociais, incluindo certas atitudes religiosas. Crescem as propostas de felicidade, realização e sucesso pessoal, em detrimento do bem comum e da solidariedade. Não raras vezes o individualismo desconsidera as atitudes altruístas, solidárias e fraternas. Por vezes, os pobres são considerados supérfluos e descartáveis 13. Desta forma, se compromete o equilíbrio entre os povos e nações, a preservação da natureza, o acesso à terra para trabalho e renda, entre outros fatores. É preciso pensar na função do Estado, na redescoberta de valores éticos, para a superação da corrupção, da violência, do narcotráfico, que envolve pessoas e armamentos. A consciência de concidadania está comprometida. Em situação de contradições e perplexidades, o discípulo missionário reage, segundo o espírito das bemaventuranças (Mt 5, 1ss), em defesa e promoção da vida, negada ou ameaçada por várias formas de banalização e desrespeito. Como não reagir diante da manipulação de embriões, homicídios, prática do aborto provocado, ausência de condições mínimas para uma vida digna com educação, saúde, trabalho, moradia, enfim, da ausência de efetiva proteção à vida e à família, às crianças e idosos, com jovens despreparados sem oportunidade para ocupação profissional?
22. O discípulo missionário observa com preocupação o surgimento de certas práticas e vivências religiosas predominantemente ligadas ao emocionalismo e ao sentimentalismo. O fenômeno do individualismo penetra até mesmo em certos ambientes religiosos, na busca da própria satisfação, prescindindo do bem maior, o amor de Deus e o serviço aos semelhantes. Oportunistas manipulam a mensagem do Evangelho em causa própria, incutindo a mentalidade de barganha por milagres e prodígios, voltados para benefícios particulares, em geral vinculados aos bens materiais. A espiritualidade, a vivência da fé e do compromisso de conversão e transformação nos
13 DGAE 2008-2010, 25; DAp 65 e 402.
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orientam para a construção da caridade, da justiça, da paz a partir das pessoas e dos ambientes onde há divisão, desafetos, disputas pelo poder ou por posições sociais. Exclui-se a salvação em Cristo, que passa a ser apresentada como sinônimo de prosperidade material, saúde física e afetiva. Reduzem-se, deste modo, o sentido de pertença e o compromisso comunitário-institucional. Surge uma experiência religiosa de momentos, rotatividade, individualização e comercialização. Já não é mais a pessoa que se coloca na presença de Deus, como servo atento (1 Sm 3,9-10), mas é a ilusão de que Deus pode estar a serviço das pessoas.
23. Importa discernir os motivos pelos quais uma ilusão tão grave assim acaba por adquirir força em nossos dias. As causas são muitas e interligadas. Dizem respeito às incontáveis carências das mínimas condições que grande parte de nossa população tem para enfrentar problemas ligados à saúde, à moradia, ao trabalho e às questões de natureza afetiva. Dizem ainda respeito às incertezas de um tempo de transformações, que levam algumas pessoas a buscarem tábuas de salvação, agarrando-se ao que mais imediatamente se encontra ao alcance. Surgem, assim, os diversos tipos de fundamentalismo, desde aquele que atinge a leitura bíblica até os mais diversos aspectos da vida humana e social. Quando aliado ao individualismo, o fundamentalismo torna-se ainda mais perigoso, na medida em que impede exatamente que se perceba o outro como diferente, por certo, mas, sem dúvida, irmão, e, por isso, apelo ao encontro e ao convívio. O amor ao próximo, especialmente aos mais pobres, tende a desaparecer destas propostas, que acabam se tornando uma espécie de culto de si mesmo.
24. Tempos de transformações tão radicais, por certo, nos afligem, mas também nos desafiam a discernir, na força do Espírito Santo, os sinais dos tempos 14. Mudanças de época pedem um tipo específico de ação evangelizadora, a qual, sem deixar de lado aspectos urgentes e graves da vida humana, preocupa-se em ajudar a encontrar e estabelecer critérios, valores e princípios 15. São tempos propícios para volta às fontes, à busca dos aspectos centrais da fé. Esta é a grande diretriz evangelizadora que vem acompanhando a Igreja neste início de século XXI: não colocar outro fundamento que não seja Jesus Cristo, o mesmo ontem, hoje e sempre (Hb 13,8) 16. Este é um tempo em que, através de “novo ardor, novos métodos e nova expressão” 17, respondamos missionariamente à mudança de época com o recomeçar a partir de Jesus Cristo.
14 DGAE 2008-2010, 12.
15 EN 19.
16 JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, 29.
17 JOÃO PAULO II, Homilia em 9 de março de 1983, na Catedral de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Porto Príncipe, Haiti por ocasião da abertura da 19ª Assembléia Geral do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM.
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III
URGÊNCIAS NA AÇÃO EVANGELIZADORA
25. Quando a realidade se transforma, devem igualmente se transformar os caminhos pelos quais passa a ação evangelizadora. Instrumentos e métodos que deram certo em outros momentos históricos, com resultados que nos alegram profundamente, podem não apresentar, em nossos dias, condições de transmitir e sustentar a fé. Enquanto, em outros períodos da história, os discípulos missionários precisaram dar as razões de sua esperança como consequência de critérios firmemente aplicados, em nossos dias, são os próprios critérios que vêm experimentando abalo. Para não poucas pessoas a incerteza sobre como julgar a realidade e com ela interagir é muito grande. Por isso, chamamos de mudança de época, pois já não atinge este ou aquele aspecto concreto da existência. As mudanças de época atingem os próprios critérios de compreender a vida, tudo o que a ela diz respeito, inclusive a própria maneira de entender Deus. O nome de Jesus Cristo é utilizado para expressar atitudes até mesmo opostas ao Reino de Deus, deixando confusos os que querem efetivamente viver o discipulado-missionário.
26. Esta é a razão pela qual a Conferência de Aparecida nos convoca a ultrapassar uma pastoral de mera conservação ou manutenção para assumir uma pastoral decididamente missionária, numa atitude que, corajosa e profeticamente, chamou de conversão pastoral 18. Assim como indica o desafio da mudança de época, Aparecida aponta a conversão pastoral como caminho para a ação evangelizadora. “Uma verdadeira conversão pastoral deve estimular-nos e inspirar-nos atitudes e iniciativas de auto-avaliação e coragem de mudar várias estruturas pastorais em todos os níveis, serviços, organismos, movimentos e associações. Temos necessidade urgente de viver na Igreja a paixão que norteia a vida de Jesus Cristo: o Reino de Deus, fonte de graça, justiça, paz e amor. Por esse Reino, o Senhor deu a vida” 19.
27. Por certo, ao reconhecer a mudança de época como o maior desafio a ser atualmente enfrentado, o discípulo missionário não se esquece das ameaças à vida de pessoas, povos e até mesmo de todo o planeta 20. Estas ameaças permanecem e necessitam ser corajosa e profeticamente enfrentadas. Contudo, neste enfrentamento, o discípulo missionário se depara com a fragilidade
18 DAp 370.
19 DGAE 2008-2010, 46.
20 CNBB, A criação geme em dores de parto. Fraternidade e Vida no Planeta, Campanha da Fraternidade 2011.
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dos critérios para ver, julgar e agir. Olhar, portanto, para a mudança de época e para o necessário (re)enraizamento de critérios, longe de significar o afastamento dos problemas concretos e urgentes da vida de nosso povo, significa buscar uma base realmente sólida para os enfrentar. Caso contrário, o discípulo missionário poderá ser como o construtor ou o chefe que, não reconhecendo os novos desafios, veem a missão fracassar (Lc 10,28-32). Voltar às fontes e recomeçar a partir de Jesus Cristo 21, longe de significar a preocupação consigo mesma, coloca a Igreja no mesmo caminho do amor-serviço aos sofredores desta terra. Porque deseja servir, a Igreja reconhece o momento histórico em que se encontra, sendo convocada a buscar caminhos para a transmissão e a sedimentação da fé, mesmo que, para isso, precise abandonar estruturas ultrapassadas que já não facilitem mais a transmissão da fé 22.
28. É, pois, neste sentido, que emergem algumas urgências na evangelização, que, por isso mesmo, devem estar presentes em todos os processos de planejamento e consequentes planos, independentemente do local onde as ações evangelizadoras aconteçam. Tais urgências dizem respeito à busca e ao encontro de caminhos para a transmissão e a sedimentação da fé neste período histórico de transformações profundas. São o elo entre tudo que se faz em termos de evangelização em todo o Brasil. Mostram uma Igreja em comunhão com sua história, com as conclusões da Conferência de Aparecida e, por isso mesmo, com as demais Igrejas no Continente e, com a realidade perplexa e sofrida do povo.
29. Por tudo isso, a Igreja no Brasil se empenhará em ser uma Igreja em permanente estado de missão, casa da iniciação à vida cristã, fonte da animação bíblica de toda a vida, comunidade de comunidades, a serviço da vida em todas as suas instâncias. Estes aspectos encontram-se inevitavelmente ligados, de tal modo que assumir um deles exige que se assumam os outros. Estão sempre presentes na vida da Igreja, pois se referem a Jesus Cristo, à Igreja, à vida comunitária, à Palavra de Deus como alimento para a fé, à Eucaristia como alimento para a vida eterna e o serviço ao Reino de Deus. Por seu testemunho e por suas ações pastorais, a Igreja suscita o desejo de encontrar Jesus Cristo. Este encontro se dá através de um mergulho gradativo no mistério do Redentor. Daí a importância da iniciação à vida cristã, a qual não acontece plenamente se não se tem contato com a Escritura 23. Alimentando, iluminando e orientando toda a ação pastoral, a Bíblia transborda para a totalidade da existência de pessoas e grupos, tornando-se luz para o caminho (Sl. 119,105). Transformados por Jesus Cristo e comprometidos com o Reino de Deus, os discípulos missionários formam comunidades, que não podem fechar-se
21 DAp 12, 41 e 549.
22 DAp 365.
23 VD 23-25.
14
em si mesmas, ao estilo de guetos ou ilhas. Por suas atitudes fraternas e solidárias, tornam-se sinais de que o Reino de Deus vai se manifestando em nosso meio (Mt 11,2-6; At 2,42), na vitória sobre o pecado e suas consequências, trabalhando incessantemente pela vida em todas as suas instâncias.
3.1. Igreja em estado permanente de missão
“Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda criatura! Quem crer e for batizado será salvo!” (Mc 16,15)
30. Jesus Cristo, o grande missionário do Pai, envia, pela força do Espírito, seus discípulos em constante atitude de missão (Mc 16,15). Quem se apaixona por Jesus Cristo deve igualmente transbordar Jesus Cristo, no testemunho e no anúncio explícito de Sua Pessoa e Mensagem. A Igreja é indispensavelmente missionária 24. Existe para anunciar, por gestos e palavras, a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo. Fechar-se à dimensão missionária implica fechar-se ao Espírito Santo, sempre presente, atuante, impulsionador e defensor (Jo 14, 16; Mt 10,19-20). Em toda a sua história, a Igreja nunca deixou de ser missionária. Em cada tempo e lugar, esta missão assume perspectivas distintas, nunca, porém, deixando de acontecer. Se hoje partilhamos a experiência cristã, é porque alguém nos transmitiu a beleza da Fé, apresentou-nos Jesus Cristo, acolheu-nos na comunidade eclesial e nos fascinou pelo serviço ao Reino de Deus.
31. No atual período da história, marcado pela mudança de época, a missão assume um rosto próprio, com pelo menos três características: urgência, amplitude e inclusão. A missão é urgente em decorrência da oscilação de critérios. É ampla e includente porque reconhece que todas as situações, tempos e locais são seus interlocutores. Até mesmo o discípulo missionário é, para si, um destinatário da missão, na medida em que está inserido nesta mudança de época, com referências flácidas e valores nem sempre efetivamente sedimentados (Mt 13,5-6.20-21). Trata-se, portanto, de suscitar em cada batizado e em cada forma de organização eclesial uma forte consciência missionária, sem a qual os discípulos missionários não contribuirão efetivamente para o novo que haverá de surgir na história. A atual consciência missionária interpela o discípulo missionário a “sair ao encontro das pessoas, das famílias, das comunidades e dos povos para lhes comunicar e compartilhar o dom do encontro com Cristo” 25. Estamos num tempo de urgente saída “em todas as direções para proclamar que o mal e a morte não têm a última palavra” 26, um
24 DAp 347.
25 DAp 548.
26 DAp 548.
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tempo de esquecer o que ficou para trás e correr em busca d‟Aquele que já nos alcançou (Fl 3,12-14), um tempo que deve levar a uma forte comoção missionária 27.
32. Na medida em que as mudanças de época atingem os critérios de compreensão, os valores e as referências, os quais já não se transmitem mais com a mesma fluidez de outros tempos 28, torna-se indispensável anunciar Jesus Cristo, apresentando, com clareza e força testemunhal, quem é Ele e qual sua proposta para toda a humanidade 29. Não se trata, por certo, de estabelecer uma espécie de concorrência religiosa, ingressando na competição por maior número de fiéis. Tampouco se trata de busca de privilégios para a Igreja, que, em todos os tempos, é chamada a ser serva humilde e despojada (Lc 17,7-10). Trata-se de se reconhecer que o distanciamento em relação a Jesus Cristo e ao Reino de Deus traz graves conseqüências para toda a humanidade. Estas conseqüências não são percebidas apenas pela redução numérica dos católicos. Elas são igualmente sentidas principalmente nas inúmeras formas de desrespeito e mesmo destruição da vida. Todas as formas de violência e exclusão revelam o distanciamento de Jesus e do Reino. São as ameaças à vida, frutos de uma cultura de morte 30, que questionam os discípulos missionários a anunciarem, principalmente através do testemunho, a beleza do Reino de Deus, que é vida, paz, concórdia, reconciliação (Gl 5,22s). Os discípulos missionários sabem que não lhes cabe a exclusividade na construção da nova época que está para surgir. Esta consciência, no entanto, não lhes exime da responsabilidade por testemunhar e anunciar Jesus Cristo e o Reino de Deus, fazendo-o oportuna e inoportunamente (2 Tm 4,2).
33. Neste redescobrir missionário, emerge, em primeiro lugar, o papel de cada pessoa batizada em todos os lugares e situações em que se encontrar. Trata-se do testemunho pessoal, base sobre a qual o explícito anúncio haverá de ser construído 31. Períodos históricos com menores doses de incerteza e oscilação oferecem aos discípulos missionários referências de valores que desaparecem nas mudanças de época, deixando-os sozinhos em meio a uma grande diversidade de valores e crenças. Este, portanto, é um tempo do testemunho! Em virtude do enfraquecimento das instituições e das tradições, cresce a responsabilidade pessoal. Em outras épocas, instituições e tradições protegiam bem mais os indivíduos. Nesta mudança de época, instituições e tradições tendem a ser socioculturalmente julgadas com base na ação dos indivíduos. Ninguém em sã consciência deseja colaborar para o mal. Em tempos de perplexidade e incertezas, os discípulos missionários sabem que necessitam de rigor ainda maior naquilo que sentem, pensam
27 DAp 362.
28 DAp 38-39.
29 DAp 348.
30 DAp 358.
31 EN 21.
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e fazem. Devem verificar se, em razão das perplexidades e incertezas, não estão, de algum modo, deixando de realmente defender, promover e testemunhar a vida em todas as suas instâncias.
34. Em segundo lugar, surge a urgência de se pensar estruturas pastorais que favoreçam a realização da atual consciência missionária. Esta “deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais” 32, a ponto de deixar para trás práticas, costumes e estruturas que, ao corresponderem a outros momentos históricos, já não têm atualmente grandes condições, como lembra Aparecida, de favorecer a transmissão da fé 33. Não se trata, portanto, de negar tudo que já foi feito em outras épocas, mas de reconhecer que, nesta mudança de época, é preciso agir com firmeza e rapidez. É neste sentido que se entende a convocação de Aparecida à conversão pastoral, através da qual se ultrapassam os limites de uma “pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” 34.
35. Surgem, deste modo, imperativos que colocam a Igreja em permanente estado de missão 35. Não se trata, portanto, de conceber a atitude missionária ao lado de outros serviços ou atividades, mas de dar a tudo que se faz um sentido missionário, estabelecendo, neste conjunto de atividades desenvolvidas, algumas urgências que ajudem todos os batizados a efetivamente se reconhecerem como missionários. A Igreja no Brasil reforça, assim, seu compromisso com a Missão Continental 36.
36. Este é o grande serviço que a Igreja, discípula-missionária de Jesus Cristo, é chamada a prestar neste momento da história. Em atitude de diálogo, cabe-lhe anunciar e reanunciar a pessoa e a mensagem de seu Mestre, conclamando à comunhão de todos os seres humanos, para a busca de uma cultura da vida, a caminho do Reino definitivo.
3.2. Igreja: casa da iniciação à vida cristã
“Paulo e Silas anunciaram a Palavra do Senhor ao carcereiro e a todos os da sua casa. E, imediatamente, foi batizado, junto com todos os seus familiares” (At 16,32s)
37. A fé é dom de Deus! “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e,
32 DAp 365.
33 DAp 365.
34 DAp 370.
35 DAp 551.
36 DAp 550-551, DGAE 2008-2010 211-212.
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com isso, uma orientação decisiva” 37. Por sua vez, este encontro é mediado pela ação da Igreja, ação que se concretiza em cada tempo e lugar, de acordo com o jeito de ser de cada povo, de cada cultura. A descoberta do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo, dom salvífico para toda a humanidade, não acontece sem a mediação dos outros (Rm 10,14).
38. Cada tempo e cada lugar têm um modo característico para apresentar Jesus Cristo e suscitar nos corações o seguimento apaixonado não a algo, mas de sua pessoa, que a todos convida para com Ele vincular-se intimamente 38. “A admiração pela pessoa de Jesus, seu chamado e seu olhar de amor despertam uma resposta consciente e livre desde o mais íntimo do coração do discípulo” 39. Todavia, como resposta, a adesão a Jesus Cristo implica anúncio, apresentação, proclamação. Em outras épocas, a apresentação de Jesus Cristo se dava através de um mundo que se concebia cristão. Família, escola e sociedade em geral, ao mesmo tempo em que ajudavam a se inserir na cultura, apresentavam também a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo.
39. Sabemos que, em nossos dias, meios utilizados em outros tempos para o anúncio de Jesus Cristo já não possuem a mesma eficácia de antes. Olhemos, por exemplo, a família, chamada a ser a grande transmissora da fé e dos valores 40. Tamanhas têm sido as transformações que a instituição familiar já não possui o mesmo fôlego de outras épocas para cumprir esta missão indispensável. O mesmo ocorre com outras instituições importantes. Esta situação exige uma radical transformação no modo de concretizar a ação evangelizadora. Em outras épocas, era possível pressupor que o primeiro contato com a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo acontecia em sociedade, possibilitado pelos diversos mecanismos culturais, fazendo com que a ação evangelizadora se preocupasse mais com a purificação e a retidão doutrinais, com a moral e com os sacramentos. A mudança de época exige que o anúncio de Jesus Cristo não seja mais pressuposto, porém explicitado continuamente. O estado permanente de missão só é possível a partir de uma efetiva Iniciação à vida cristã.
40. Esta é a razão pela qual cresce o incentivo à Iniciação à vida cristã, “grande desafio que questiona a fundo a maneira como estamos educando na fé e como estamos alimentando a experiência cristã” 41. Trata-se, portanto, de “desenvolver, em nossas comunidades, um processo de iniciação à vida cristã que conduza a um encontro pessoal, cada vez maior com Jesus Cristo”
37 PAPA BENTO XVI, Encíclica Deus Charitas est, 1, DAp 12, 243-244.
38 DAp 131.
39 DAp 136.
40 DAp 432.
41 DAp 287.
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42, atitude que deve ser assumida em todo o continente latino-americano e, portanto, também no Brasil 43. Este é um dos mais urgentes sentidos do termo missão em nossos dias. É o desafio de anunciar Jesus Cristo, recomeçando a partir dele, sem “dar nada como pressuposto ou descontado” 44. É preciso ajudar as pessoas a conhecer Jesus Cristo, fascinar-se por Ele e optar por segui-lo.
41. A Conferência de Aparecida, além de elevar a iniciação à vida cristã à categoria de urgência, lembra que ela deve acontecer não apenas uma única vez na vida de cada pessoa. A iniciação cristã não se esgota na preparação aos sacramentos do batismo, crisma e eucaristia. Ela se refere à adesão a Jesus Cristo. Esta adesão deve ser feita uma primeira vez, mas refeita, fortalecida e ratificada tantas vezes quantas o cotidiano exigir 45. Ela acontece, por exemplo, quando chegam os filhos, quando o adolescente busca a sua identidade, quando o jovem prepara suas escolhas futuras, no noivado e no matrimônio, nas experiências de dor e fragilidade. Nossas comunidades precisam ser comunidades diuturnamente mistagógicas, preparadas para permitir que o encontro com Jesus Cristo 46 se faça e se refaça permanentemente.
42. Esta perspectiva eminentemente catecumenal de nossas comunidades apresenta uma série de consequências para a ação evangelizadora. Em primeiro lugar, processo permanente de iniciação apresenta uma série de exigências para a evangelização: acolhida, diálogo, partilha, bem como uma maior familiaridade com a Palavra de Deus e a vida em comunidade. Em segundo lugar, implica estruturas, isto é, grupos de estilo catecumenal nos mais diversos lugares e horários, sempre disponíveis a acolher, apresentar Jesus Cristo e dar as razões da nossa esperança (1 Pd 3,15). Implica, assim, um novo perfil de agente evangelizador, no qual o Ministério dos(as) Introdutores(as)47 e Catequistas assuma papel preponderante. Eles são a ponte entre o coração que busca descobrir ou redescobrir Jesus Cristo e Seu seguimento na comunidade de irmãos, em atitudes coerentes e na missão de colaborar na edificação do Reino de Deus.
43. No serviço do acolhimento, que inicia ou reinicia no encontro com Jesus Cristo e com a comunidade dos discípulos, a ação evangelizadora se põe em diálogo com o atual momento da história, que pede o anúncio explícito e contínuo de Jesus Cristo e o chamado à comunhão, como atitude decorrente para a vivência de fé e para a vida em geral.
42 DAp 289.
43 DAp 294.
44 DAp 549.
45 DAp 288.
46 DAp 246-257, 278.
47 “Pessoa que conhece o candidato ao Batismo, acompanha e é testemunha de seus costumes, fé e desejo de receber os sacramentos. Não é necessariamente o padrinho ou madrinha”. cf: Ritual de Iniciação Cristã de Adultos, 42.
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3.3. Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral
“Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para argumentar, para corrigir, para educar conforme a justiça” ( 2Tm 3,16).
44. Deus se dá a conhecer no diálogo que estabelece conosco 48. “Quem conhece a Palavra divina conhece plenamente também o significado de cada criatura” 49. “A Palavra divina, pronunciada no tempo, deu-Se e entregou-Se à Igreja definitivamente para que o anúncio da salvação possa ser eficazmente comunicado em todos os tempos e lugares. ... Disto conclui-se como é importante que o Povo de Deus seja educado e formado claramente para se abeirar das Sagradas Escrituras na sua relação com a Tradição viva da Igreja, reconhecendo nelas a própria Palavra de Deus”. 50
45. Vinculado com a iniciação à vida cristã, o atual momento da ação evangelizadora convida o discípulo missionário a redescobrir o contato pessoal e comunitário com a Palavra de Deus como lugar privilegiado de encontro com Jesus Cristo 51. “Na alvorada do terceiro milênio, não só existem muitos povos que ainda não conheceram a Boa Nova, mas há também muitos cristãos que têm necessidade que lhes seja anunciada novamente, de modo persuasivo, a Palavra de Deus, para poderem assim experimentar concretamente a força do Evangelho” 52. A Igreja hoje tem consciência de que “particularmente as novas gerações têm necessidade de ser introduzidas na Palavra de Deus através do encontro e do testemunho autêntico do adulto, da influência positiva dos amigos e da grande companhia que é a comunidade eclesial” 53
46. Não se trata, por certo, de nos voltarmos para a Palavra de Deus como atitude momentânea, fruto do atual período da história. Trata-se de redescobrir ainda mais que o contato profundo e vivencial com as Escrituras é condição indispensável para encontrar a pessoa e a mensagem Jesus Cristo e aderir ao Reino de Deus 54. Deste modo, iniciação à vida cristã e Palavra de Deus estão intimamente ligadas. Uma não pode acontecer sem a outra, pois “ignorar as Escrituras é ignorar o próprio Cristo” 55. Este é um tempo muito rico para que cada pessoa seja iniciada na contemplação da vida à luz da Palavra e no empenho para que ela seja efetivamente colocada em prática (Tg 1,22-25).
48 DV 15; VD 6.
49 VD 10.
50 VD 17-18.
51 DAp 247-249.
52 VD 96.
53 VD 97.
54 DAp 247.
55 S. Jerônimo, Prólogo ao Comentário sobre o Livro do Profeta Isaías, N 1.2: CCL 73, 1-3.
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47. É, pois, no contato eclesial com a Palavra de Deus que o discípulo missionário, permanecendo fiel, vai encontrar forças para atravessar um período histórico de pluralismo e grandes incertezas. Bombardeado a todo o momento por questões que lhe desafiam a fé, a ética e a esperança, o discípulo missionário precisa estar de tal modo familiarizado com a Palavra de Deus e com o Deus da Palavra, que, mesmo abalado pelas pressões, continue solidamente firmado em Cristo Jesus e, por seu testemunho, converta os corações que o questionam (At 16,16-34). Não há, pois, discípulo missionário sem efetivo contato com a Palavra de Deus, um contato que atinge toda a vida e que é transmitido aos irmãos e irmãs. Esse encontro gera solidariedade, justiça, reconciliação, paz e defesa de toda a criação. Dirige-se às crianças, aos jovens, aos adultos, idosos, migrantes, doentes, pobres e pecadores 56.
48. Nosso tempo traz em si uma ambiguidade. Estamos num tempo de muitas falas, muitos ruídos, muito barulho, incertezas e crise de referências. O mundo fala, mas tem sede de palavra que guia, tranquiliza, impulsiona, envolve, ajuda a discernir. O mundo tem sede, portanto, da Palavra de Deus. Nosso tempo carece de conhecer verdadeiramente a Palavra, deixar-se apaixonar por ela e, com ela, caminhar pelas sendas do Reino. O mundo informatizado tem contribuído com o enriquecimento dos conhecimentos e conscientização da realidade. Tem igualmente sobrecarregado a vida das pessoas de informações, muitas delas contraditórias, distorcidas e não éticas. Este é um dos graves ruídos que tem atingido a todos, principalmente os jovens. O atual excesso de informações não contempla uma formação adequada que os auxilie na síntese, no discernimento, nas escolhas. “O desafio para o jovem – assim como para todos os que aceitam Jesus como caminho – é escutar a voz de Cristo em meio a tantas outras vozes”.57
49. Infelizmente, em meio a tantos ruídos, também podemos constatar que a Bíblia é algumas vezes usada não como luz para a vida. Ao contrário, é instrumentalizada até mesmo para engodo. Cabe ao discípulo missionário não se abater diante de tamanha manipulação da Escritura. Se, por amor, Jesus Cristo, Palavra eterna do Pai, se entregou para a nossa salvação, como se abater ao constatar que a Escritura parece refém de quem busca apenas o benefício próprio? Assim como o Senhor Jesus venceu a morte e o pecado, o discípulo missionário de hoje é chamado a ultrapassar as teias da manipulação bíblica e fazer a Palavra brilhar (Mt 5,14-16), como fonte de vida, justiça e paz.
50. Neste contato, o discípulo missionário haverá de reconhecer e testemunhar que a Palavra é de Deus e como tal deve ser acolhida e praticada. Isto significa assumir que, no contato com a Palavra, “não se trata de um encontro entre dois contraentes iguais; aquilo que designamos por Antiga e
56 VD 99-108.
57 CNBB, Evangelização da Juventude, Documento 85, nº 60.
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Nova Aliança não é um ato de entendimento entre duas partes iguais, mas puro dom de Deus” 58. Não é o discípulo missionário que indica à Palavra o que ela deve dizer. Antes, o discípulo missionário é um ouvinte da Palavra (Is 50,5). Ele a acolhe na gratuidade e na alteridade, deixando-se apaixonadamente interpelar.
51. Ao se curvar diante da Palavra, o discípulo missionário sabe que não o faz isoladamente. Ele acolhe o dom da Palavra na comunhão com esta mesma Palavra e com todos que também a acolhem. Acolhe o dom da Palavra na Igreja e com toda a Igreja. Assim, a Palavra é saboreada na alteridade, na gratuidade e também na eclesialidade. Quanto bem tem feito, pelo Brasil afora, nas mais diversas realidades, a leitura da vida à luz da Palavra! Quantas comunidades se nutrem dominicalmente da Palavra de Deus, experimentando a força deste alimento salutar 59! Quanta riqueza evangelizadora acontece nos Círculos Bíblicos, nos Grupos de Reflexão, nos Grupos de Quadra e outros similares!
52. São vários os métodos de leitura da Bíblia 60. A Conferência de Aparecida destacou a Leitura Orante como caminho para o encontro com a Palavra de Deus. Nela, o discípulo missionário acolhe a Palavra como dom, mergulha na riqueza do texto sagrado e, sob o impulso do Espírito, assimila esta Palavra na vida e na missão. Em meio à agitação cotidiana, notadamente nas grandes cidades, onde o tempo se tornou uma questão crucial, a Leitura Orante permite ao discípulo missionário estabelecer uma relação com a Palavra de Deus a qualquer momento e em qualquer lugar. Assim como dois amigos são capazes de se identificar em meio à multidão, o discípulo missionário, através do exercício da Leitura Orante, aprende a estabelecer contato com a Palavra de Deus e com o Deus da Palavra, ainda que em meio à agitação correria diária.
53. Por tudo isso, o discípulo missionário compreende a expressão do salmista, quando diz que a Palavra de Deus é luz para sua vida (Sl 119,105). Ao fazer esta experiência, ele une profundamente sua palavra à Palavra de Deus. Reza com a Palavra, reza a Palavra. Eis porque podemos dizer que a animação bíblica de toda a pastoral, passa além de uma pastoral bíblica especializada 61, quer nos conduzir a uma iluminação bíblica de toda a vida, porque é um caminho de conhecimento e interpretação da Palavra, um caminho de comunhão e oração com a Palavra e um caminho de evangelização e proclamação da Palavra. O contato interpretativo, orante e
58 VD 22.
59 DAp 253.
60 VD 29.
61 DAp 248; VD 73.
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vivencial com a Palavra de Deus não forma necessariamente doutores. Forma santos 62. Esta perspectiva deve orientar também a formação inicial e permanente dos presbíteros.
54. A Igreja, como casa da Palavra, antes de tudo, deve privilegiar a Liturgia, pois é o âmbito privilegiado onde Deus fala à comunidade. Nela Deus fala e o povo escuta e responde. Cada ação litúrgica está, por sua natureza, impregnada da Escritura Sagrada 63.
55. Como conseqüência do serviço que disponibiliza ainda mais a Palavra de Deus, cada discípulo missionário se descobre preparado para o diálogo com uma mentalidade que, sob diversas formas, o interpela. Pela firmeza em seus valores e referências, faz de sua vida um verdadeiro anúncio do que podem ser os novos tempos que estão para surgir, tempos de comunhão, que brota da Palavra, gerando vida e paz.
3.4. Igreja: comunidade de comunidades
“Às Igrejas da Galácia, a vós graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” (Gl 1,2s).
56. O discípulo missionário de Jesus Cristo faz parte do Povo de Deus (1Pd 2,9-10; LG 9) e necessariamente vive sua fé em comunidade. “A dimensão comunitária é intrínseca ao mistério e à realidade da Igreja, que deve refletir a Santíssima Trindade” 64. Sem vida em comunidade, não há como efetivamente viver a proposta cristã, isto é, o Reino de Deus. A comunidade acolhe, forma e transforma, envia em missão, restaura, celebra, adverte e sustenta. Ao mesmo tempo em que se constata, nesta mudança de época, uma forte tendência ao individualismo, percebe-se igualmente a busca por vida comunitária. Esta busca nos recorda como é importante a vida em fraternidade. Mostra também que o Espírito Santo acompanha a humanidade suscitando, em meio às transformações da história, a sede por união e solidariedade. Em nossos dias, além das comunidades territorialmente estabelecidas, deparamo-nos com comunidades transterritoriais, ambientais e afetivas. Constatamos também o rápido crescimento das comunidades virtuais, tão presentes na cultura juvenil atual. Estes fatos abrem o coração do discípulo missionário a novos horizontes de concretização comunitária.
57. As Diretrizes anteriores afirmavam: “concretamente, para a maioria dos nossos fiéis, a relação com a Igreja se restringe aos chamados serviços paroquiais. É aí que a maioria das pessoas, atualmente, se relaciona com a Igreja”. E aquelas Diretrizes concluíam: “por isso, as Paróquias
62 VD 49; 77
63 Cf. VD 52
64 DAp 304.
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têm um papel fundamental na evangelização e precisam tornar-se sempre mais comunidades vivas e dinâmicas de discípulos missionários de Jesus” 65.
58. A busca sincera por Jesus Cristo faz surgir a correspondente busca por diversas formas de vida comunitária. Articuladas entre si, na partilha da fé e na missão, estas comunidades se unem, dando lugar a verdadeiras redes de comunidades. Entre outras, encontram-se as Comunidades Eclesiais de Base 66 e outras formas de novas comunidades 67, cada uma vivendo o seu carisma, assumindo a missão evangelizadora de acordo com a realidade local e se articulando de modo a testemunhar a comunhão na pluralidade.
59. Comunidade implica necessariamente convívio, vínculos profundos, afetividade, interesses comuns, estabilidade e solidariedade nos sonhos, nas alegrias e nas dores. Um dos maiores desafios consiste em iluminar com a Boa Nova as experiências nos ambientes marcados por aguda urbanização, para os quais vizinhança geográfica não significa necessariamente convívio, afinidade e solidariedade. Outro grande desafio encontra-se nos ambientes virtuais, onde a rapidez da comunicação e a liberdade em relação às distâncias geográficas tornam-se grandes atrativos. Estas situações se configuram desafios para a ação evangelizadora na medida em que nada substitui o contato pessoal.
60. No caminhar em busca de vida comunitária, constata-se a presença das comunidades eclesiais de base, as CEBs, que, alimentadas pela Palavra, pela fraternidade, pela oração e pela Eucaristia, são sinal ainda hoje de vitalidade da Igreja 68. São, também, presença eclesial junto aos mais simples, partilhando a vida e com ela se comprometendo em vista de uma sociedade justa e solidária. Veem-se atualmente desafiadas a não esmorecer, mas discernir, na comunhão da Igreja, caminhos para enfrentar os desafios oriundos de um mundo plural, globalizado, urbanizado e individualista. Também elas se deparam com os desafios da mudança de época.
61. Num mundo plural, não se pode querer um único modo de ser comunidade. O Espírito sopra onde quer e nenhuma concretização comunitária possui o monopólio da ação deste mesmo Espírito. Nenhuma deve chamar para si a primazia sobre as demais, pois todos os membros do corpo possuem igual valor (1 Cor 12,12ss). A comunidade eclesial deve abrir-se para acolher dinamicamente os vários carismas, serviços e ministérios. De cada uma dessas comunidades, exige-se que sejam alicerçadas na Palavra de Deus, celebrem e vivam os sacramentos, manifestem seu compromisso evangelizador e missionário, principalmente com os afastados,
65 DGAE 2008-2010, 154
66 DAp 178-180, 307-310.
67 DAp 180.
68 cf.: CNBB, Mensagem ao Povo de Deus sobre as CEBs - Doc 92
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sejam solidárias com os mais pobres. 69 O importante é não confundir a natureza das comunidades 70 e, assim, evitar-se-ão concorrências, desgastes inúteis e ambigüidades. Todas as comunidades são convocadas a se unirem em torno das Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil e a assumirem os Planos Pastorais de cada Igreja Particular 71.
62. O caminho para que a paróquia se torne verdadeiramente uma comunidade de comunidades é inevitável, desafiando a criatividade, o respeito mútuo, a sensibilidade para o momento histórico e a capacidade de agir com rapidez. Mesmo consciente de que processos humanos e transformações de mentalidade não acontecem de uma hora para outra, a Igreja no Brasil se compromete em acelerar ainda mais o processo de animação e fortalecimento de efetivas comunidades, que buscam intensificar a vida cristã por meio de autêntico compromisso eclesial. A setorização da paróquia 72 pode favorecer o nascimento de comunidades, pois valorizam os vínculos humanos e sociais. Assim, a Igreja se faz presente nas diversas realidades, vai ao encontro dos afastados, promove novas lideranças e a iniciação à vida cristã acontece no ambiente em que as pessoas vivem.
63. Importa reconhecer que o investimento nestas pequenas comunidades traz consigo o desafio de se pensar naqueles que as vão pastorear, bem como na diversificação dos ministérios confiados aos leigos. A pastoral vocacional se torna prioritária, sobretudo para o ministério ordenado e a vida consagrada, e a sempre crescente adequação da formação diaconal e presbiteral, inicial e permanente, a este novo momento da história da evangelização. Deve ser sempre mais valorizada a atuação do laicato na animação das comunidades 73. Não há como prescindir de sua participação na “elaboração e execução de projetos pastorais a favor da comunidade” 74. Sob a orientação do bispo diocesano, presbíteros, diáconos, consagrados e leigos devem se unir em torno das grandes metas evangelizadoras e dos projetos pastorais que as concretizam. Uma Igreja com diversas formas de ser comunidade deve ser igualmente uma Igreja que testemunha a comunhão de dons, serviços e ministérios.
64. Em tempos de incerteza, individualismo e solidão, a presença de uma comunidade próxima à vida, às alegrias e às dores, é um serviço, que urge apresentar a um mundo que necessita vencer a
69 DAp 179.
70 Cf DAp 15
71 DAp 179.
72 DAp 197, 172 e 372.
73 DAp 99c; 211, 213.
74 DAp 213.
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“cultura de morte”. Comunidades são escolas de diálogo interno e externo. São pontos de partida para o anúncio do Deus da Vida, que acolhe, redime, purifica, gera comunhão e envia em missão.
3.5. Igreja a serviço da vida plena para todos
“Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
65. A vida é dom de Deus! “A grande novidade que a Igreja anuncia ao mundo é que Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, a Palavra e a Vida, veio ao mundo para nos fazer „partícipes da natureza divina‟ (2 Pd 1,4), e para que participemos de sua própria vida. É a vida trinitária do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a vida eterna” 75. “O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há de ser fiel e corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os tempos e culturas” 76. A Palavra de Deus ilumina o compromisso com a rede de comunidades e faz pulsar a vida do Espírito nas artérias da Igreja e em meio ao mundo. A missão dos discípulos é o serviço à vida plena 77 .
66. A Igreja no Brasil sabe que “nossos povos não querem andar pelas sombras da morte. Têm sede de vida e felicidade em Cristo” 78. Por isso, proclama com vigor que “as condições de vida de muitos abandonados, excluídos e ignorados em sua miséria e dor, contradizem o projeto do Pai e desafiam os discípulos missionários a maior compromisso a favor da cultura da vida” 79. Ao longo de uma história de solidariedade e compromisso com as incontáveis vítimas das inúmeras formas de destruição da vida, a Igreja se reconhece servidora do Deus da Vida. A nova época que, pela graça deste mesmo Deus, haverá de surgir, precisa ser marcada pelo amor e valorização da vida, em todas as suas dimensões. A omissão diante de tal desafio será cobrada por Deus e pela história futura.
67. Ao mergulhar nas profundezas da existência humana, o discípulo missionário abre seu coração para todas as formas de vida ameaçada desde o seu início até a morte natural. Na medida em que nenhuma vida existe apenas para si, mas para outras e para Deus este é um tempo mais do que propício para a articulação e integração de todas as formas de paixão pela vida. Só assim conseguiremos, de fato, vencer os tentáculos da cultura de morte 80.
75 DAp 348.
76 EV 1.
77 DAp, cap. VII.
78 DAp 350.
79 DAp 358.
80 DGAE 2008-2010, 142.
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68. É através da promoção da cultura da vida que os discípulos missionários de Jesus Cristo testemunham verdadeiramente a sua fé. Num tempo que tende a privilegiar o indivíduo, a ganância e o culto ao corpo, em detrimento do bem comum o discípulo missionário sabe que Jesus Cristo veio dar a vida em resgate de todos, voltando-se de modo especial para a ovelha perdida, desgarrada, fragilizada 81. “É pelo amor-serviço à vida que o discípulo missionário haverá de pautar seu testemunho, numa Igreja que segue os passos de Jesus, adotando sua atitude” 82, sendo pobre, despojada, sem bolsa nem alforje, colocando sua confiança unicamente no Senhor (Lc 10,3-9).
69. Contemplando os diversos rostos de sofredores, desta Terra de Santa Cruz, especialmente, os “novos rostos dos pobres” 83 o discípulo missionário enxerga, em cada um, o rosto de seu Senhor: chagado, destroçado, flagelado (Is 52,13 ss) 84. Seu amor por Jesus Cristo e Cristo Crucificado (1 Cor 1,23-25), leva-o a buscar o Mestre em meio às situações de morte (cf. Mt 25,31-46). Leva-o a não aceitar tais situações de morte, sejam elas quais forem, envolvendo-se na preservação da vida. O discípulo missionário não se cala diante da vida impedida de nascer seja por decisão individual, seja pela legalização e despenalização do aborto. Não se cala igualmente diante da vida sem alimentação, casa, terra, trabalho, educação, saúde, lazer, liberdade, esperança e fé. Torna-se, deste modo, alguém que sonha e se compromete com um mundo onde sejam efetivamente reconhecidos o direito a nascer, crescer, constituir família, seguir a vocação, crer e manifestar sua fé, um mundo onde o perdão seja a regra; a reconciliação, meta de todos; a tolerância e respeito, condição de felicidade; a gratuidade, vitória sobre a ambição. O discípulo missionário reconhece que, seu sonho por vida eterna, leva-o a ser, já nesta vida, parceiro da vida e vida em plenitude. Daí o “ratificar e potencializar a opção preferencial pelos pobres”85, “implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza”86, e que deverá “atravessar todas as suas estruturas e prioridades pastorais”87 manifestando-se “em opções e gestos concretos”88.
70. De modo especial ressalte-se a importância da vida no planeta, dilapidada pelo uso ganancioso e irresponsável tanto ética quanto ecologicamente. Nestes tempos de crescente consciência
81 DAp 30.
82 DAp 31.
83 DAp 402.
84 DAp 32, 65 e 402.
85 DAp 396 ; 407-430..
86 Dap, DI 3.
87 DAp 396.
88 DAp 397; cf. BENTO XVI, Deus Caritas est 28 e 31.
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ecológica, a Igreja no Brasil, em linha de continuidade com o que faz há quatro décadas, realizou, em 2011, a Campanha da Fraternidade para alertar que, assim como os filhos e filhas de Deus sofrem desrespeito e ameaças, o planeta inteiro se depara, como nunca visto antes, com o risco de degradação talvez irreversível 89.
71. Consciente de que precisa enfrentar as urgências que decorrem da miséria e da exclusão, o discípulo missionário também sabe que não pode restringir sua solidariedade ao gesto imediato da doação caritativa. Embora importante e mesmo indispensável, a doação imediata do necessário à sobrevivência não abrange a totalidade da opção pelos pobres. Antes de tudo, esta implica convívio, relacionamento fraterno, atenção, escuta, acompanhamento nas dificuldades, buscando, a partir dos próprios pobres, a mudança de sua situação. Os pobres e excluídos são sujeitos da evangelização e da promoção humana integral 90. Em tudo isso, a Igreja reconhece a importância da atuação no mundo da política e, por isso, incentiva os leigos e leigas à participação ativa e efetiva nos diversos setores diretamente voltados para a construção de um mundo mais justo, fraterno e solidário.91
72. O serviço testemunhal à vida, de modo especial à vida fragilizada e ameaçada, é a mais forte atitude de diálogo que o discípulo missionário pode e deve estabelecer com uma realidade que sente o peso da cultura da morte. Na solidariedade de uma igreja samaritana 92, o discípulo missionário vive o anúncio de um mundo diferente, que, acima de tudo, por amar a vida, convoca à comunhão efetiva entre todos os seres vivos.
89 CNBB, A criação geme em dores de parto. Fraternidade e Vida no Planeta, Campanha da Fraternidade 2011.
90 DAp 397-398.
91 cf.: AA 7;lg 35; CFL 3 Papa Bento XVI, Encíclica Deus Caritas Est, 28; DAp 99f, 100c; 210.
92 DAp 27.
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IV
PERSPECTIVAS DE AÇÃO
73. De nosso olhar como discípulos missionários sobre marcas de nosso tempo (Cap. II), confrontado com as urgências na ação evangelizadora (Cap. III), a partir de Jesus Cristo (Cap. I), derivam numerosos e complexos desafios pastorais. Em nosso imenso Brasil, as particularidades de cada contexto exigem que cada Igreja Particular responda a eles, a seu modo. Entretanto, em um mundo globalizado, além de características comuns da realidade brasileira em suas diferentes regiões, a fidelidade ao Evangelho no hoje de nosso tempo e o caráter indispensável do testemunho de unidade exigem uma ação orgânica em torno a alguns referenciais comuns.
74. A proposta de algumas perspectivas de ação quer contribuir, por um lado, com uma Igreja “comunhão e participação”93, despertando a criatividade e fornecendo subsídios às diversas iniciativas de ação. Por outro, quer promover, nas Igrejas Particulares e entre elas, uma pastoral orgânica e de conjunto mais eficaz, pois, na perspectiva do Vaticano II, a Igreja é “Igreja de Igrejas” 94. Trata-se de linhas e formas de ação, de critérios, que cada Igreja Particular precisará concretizar em processos de ação pastoral, segundo as condições e necessidades do próprio contexto.
75. Ao pensar nas perspectivas de ação, será útil lembrar que de 2012 a 2015, estaremos comemorando os 50 anos da realização do Concílio Vaticano II, com várias ações na Igreja no Brasil. O Concílio representa um acontecimento eclesial que marcou fortemente a caminhada da Igreja, promovendo a atualização de métodos e de linguagem, verdadeiro pentecostes do século XX. Várias atividades serão programadas pela CNBB, através da Comissão constituída para este fim, que precisarão ser integradas no processo de execução destas Diretrizes Gerais.
4.1. Igreja em permanente estado de missão
76. A Conferência de Aparecida nos convocou a ser uma Igreja toda missionária e em estado permanente de missão: “ai de mim se não evangelizar!” (1 Cor 9,16). A Igreja nasce da missão e
93 DAp 213, 368.
94 Cf. LG 23.
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existe para a missão. Existe para os outros e precisa ir a todos95. No processo de evangelização, o testemunho é condição para o anúncio. A própria comunidade cristã precisa ser ela mesma anúncio, pois o mensageiro é também Mensagem. Os mensageiros de Jesus Cristo são, antes de tudo, testemunhas daquilo que viram, encontraram e experimentaram. Este fato implica irradiar a presença de Deus, de Jesus Cristo, Deus-Conosco, e, na força do Espírito Santo, proclamar com a palavra e com a vida que Cristo está vivo entre nós. Vendo a comunidade cristã reunida no amor e em oração, as pessoas de hoje exclamarão, como o visitante de quem fala Paulo aos Coríntios: “Verdadeiramente, Deus está entre vós!” (1 Cor 14,25). A experiência de fé faz transbordar o anúncio para além da comunidade cristã, para cada um dos ambientes onde os mensageiros são enviados a se fazer presentes como Jesus, cheio de graça e de verdade.
77. Homens e mulheres do nosso tempo apreciam, principalmente, o testemunho 96. Mas isso não dispensa a comunidade – como não dispensa cada cristão - de prestar o serviço da proclamação ou do anúncio explícito97, oferecendo às pessoas, grupos e a todo o gênero humano a pregação do Evangelho, nas variadas modalidades que o ministério da Palavra pode assumir.
78. Cabe a cada comunidade eclesial perguntar quais são os grupos humanos ou as categorias sociais que merecem atenção especial e lhes dar prioridade no trabalho de evangelização. Entre esses grupos estão os que têm pouco vínculo com a Igreja. Às vezes são jovens; outras vezes, pessoas vivendo na periferia de nossas cidades, intelectuais, artistas, políticos, formadores de opinião, trabalhadores com grande mobilidade, nômades etc. Importa ir ao encontro deles, não apenas nas famílias e nas residências, mas também em todos os ambientes. As missões populares, indo ao encontro do apelo da Missão Continental, têm se mostrado um caminho eficaz. As visitas sistemáticas nos locais de trabalho, nas moradias de estudantes, nas favelas e nos cortiços, nos alojamentos de trabalhadores, nas instituições de saúde, nos assentamentos, nas prisões, nos albergues e junto aos moradores de rua98, entre outros, são testemunho de uma Igreja samaritana. A pastoral da visitação pode dar maior organicidade e eficácia a este serviço.
79. Entre os grupos humanos aos quais deve se dirigir o anúncio missionário, a partir das nossas comunidades eclesiais, estão também os povos indígenas e os afro-brasileiros, na perspectiva da evangelização inculturada, pelas atitudes do serviço, do diálogo, do testemunho e do anúncio explícito da mensagem cristã.
95 Cf. EN 14.
96 Cf. EN 21.
97 Cf. EN 22.
98 Cf. DAp 407.
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80. Contradiz profundamente a dinâmica do Reino de Deus e de uma Igreja em estado permanente de missão, a existência de comunidades cristãs fechadas em torno de si mesmas, sem relacionamento com a sociedade em geral, com as culturas, com os demais irmãos que também crêem em Jesus Cristo e com as outras religiões. Inclusive eventos esportivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas que o Brasil vai sediar nos próximos anos, podem ser momentos de evangelização, especialmente da juventude.
81. Atenção especial merecem os nossos jovens. A beleza da juventude e os inúmeros desafios para a plenitude de sua vida exigem urgentes iniciativas pastorais nas diversas instâncias de nossa ação evangelizadora. O Documento 85 da CNBB motiva e norteia nossos projetos em vista disso. A crescente participação do Brasil nas Jornadas Mundiais da Juventude nos convida, também, à organização de um caminho que garanta o crescimento da animação dos jovens em vista de sua identidade de discípulos missionários de Jesus Cristo. O combate à apologia e ao uso de drogas, a todo tipo de violência e extermínio de jovens, uma atraente proposta vocacional e a oferta de um itinerário para a organização de seu projeto pessoal de vida contribuirão com a vida plena desta parcela tão significativa de nossa Igreja e da sociedade.
82. Um dos primeiros desafios é o ecumenismo, a unidade com os irmãos e irmãs que crêem em Jesus Cristo. O escândalo da divisão entre os cristãos99 nos interpela a evitar a indiferença. “Não bastam as manifestações de bons sentimentos. Fazem falta gestos concretos que penetrem nos espíritos e sacudam as consciências, impulsionando cada um à conversão interior, que é o fundamento de todo progresso no caminho do ecumenismo.”100 Sobretudo, cada Igreja Particular está desafiada a dar passos mais consistentes no campo do ecumenismo.
83. Um segundo desafio é o diálogo inter-religioso, o encontro fraterno e respeitoso com os seguidores de religiões não-cristãs e com todas as pessoas empenhadas na busca da justiça e na construção da fraternidade universal.101 Especial atenção merece o diálogo com os judeus e os muçulmanos, irmãos de fé no Deus Uno, com as expressões religiosas afro-descendentes e indígenas, assim como com os ateus. Assim como o ecumenismo, o diálogo inter-religioso precisa integrar a vida e a ação de nossas comunidades eclesiais.
99 Cf. UR 1; JOÃO PAULO II, Homilia na abertura da porta santa da basílica de São Paulo Fora dos Muros, 18 de janeiro de 2000, 2.
100 DAp 234.
101 Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A UNIDADE DOS CRISTÃOS, Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo, 210. 1993.
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84. Uma Igreja em estado permanente de missão nos interpela, finalmente, à missão ad gentes, dando “de nossa pobreza” 102, em outras regiões e além fronteiras. Uma Igreja Particular não pode esperar atingir a plena maturidade eclesial para, só então, começar a se preocupar com a missão para além de seu território. A maturidade eclesial é consequência e não apenas condição de abertura missionária.
4.2. Igreja: casa da iniciação à vida cristã
85. Nos dias atuais, a catequese de inspiração catecumenal103, que equivale ao processo de iniciação cristã, adquire grande importância, não limitada a crianças. Trata-se de uma catequese não-ocasional (apenas na ocasião de preparar-se para receber algum sacramento), permanente. Isso implica melhor formação dos responsáveis 104 e um itinerário catequético permanente, assumido pela Igreja Particular, com a ajuda da Conferência Episcopal,105 que não se limite a uma formação doutrinal, mas integral, à vida cristã. A inspiração bíblica, catequética e litúrgica é condição fundamental para a iniciação cristã de crianças, bem como de adolescentes, jovens e adultos que não foram suficientemente orientados na fé e nas obras inspiradas pela fé.
86. É necessário desenvolver em nossas comunidades um processo de iniciação na vida cristã, que conduza ao “encontro pessoal com Jesus Cristo” 106, no cultivo da amizade com Ele pela oração, no apreço pela celebração litúrgica, na experiência comunitária e no compromisso apostólico, mediante um permanente serviço aos demais 107. As muitas manifestações da piedade popular católica precisam ser valorizadas e estimuladas e, onde for necessário, também purificadas. Tais práticas tem grande significado para a preservação e a transmissão da fé e também para a iniciação à vida cristã.
87. No contexto em que vivemos, marcado pelo pluralismo e o subjetivismo, desencadear o processo de iniciação à vida cristã, implica uma grande atenção às pessoas, com um atendimento personalizado108. Trata-se de estabelecer um diálogo inter-pessoal, de reflexão sobre a experiência de vida, abrindo-a a seu verdadeiro sentido. É importante valorizar e respeitar a
102 Puebla, 368; cf. também CNBB, doc. 40, Igreja: comunhão e missão, 119.
103 Cf. DAp 294; CNBB. Doc. Catequese Renovada. São Paulo, Paulinas. 1983.
104 Cf. DAp 296.
105 Cf. DAp 298.
106 DAp 289.
107 Cf. DAp 299. A qualidade e os frutos do catecumenato são diretamente proporcionais à sua duração. A escolha mais difícil do Bispo para a iniciação cristã é sua duração. O Rito de Iniciação Cristã de Adultos (RICA) frisa que “deve prolongar-se e, se necessário, mesmo por vários anos para que a conversão e a fé possam amadurecer” (RICA 7/b; 98).
108 Diretório Geral para a Catequese (1997), 170; JOÃO PAULO II, Redemptor Hominis, 14;
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liberdade de cada um, assim como a experiência de cada um, pois toda pessoa traz em si um desejo e uma capacidade de encontro com a Palavra de Deus, que o próprio Espírito Santo suscita.
88. As pessoas, hoje, ciosas de sua liberdade e autonomia, querem se convencer pessoalmente. Desejam discutir, refletir, avaliar, ponderar os argumentos a favor e contra determinada visão, doutrina ou norma. Por isso, no processo de iniciação à vida cristã, deve-se ter consciência que, mesmo em se tratando da Boa Nova, não se pode impor. A pedagogia evangélica consiste na persuasão do interlocutor pelo testemunho de vida e por uma argumentação sincera e rigorosa, que estimula na busca da verdade.
89. No anúncio da Boa Nova, antes do missionário, sempre chega o Espírito Santo, protagonista da evangelização. É Ele quem move o coração para o encontro pessoal com Jesus Cristo, embora se trate de um encontro sempre mediado por pessoas. O discípulo missionário crê em Igreja, crê com os outros discípulos missionários e naquilo que os outros discípulos missionários crêem. No processo de iniciação cristã, portanto, é preciso dar grande valor à relação inter-pessoal, no seio de uma comunidade eclesial. As pessoas não buscam em primeiro lugar as doutrinas, mas o encontro pessoal, o relacionamento solidário e fraterno, a acolhida, vivência implícita do próprio Evangelho.
90. O lugar da iniciação cristã é a comunidade eclesial. Que esta, portanto, particularmente a Paróquia, seja lugar de iniciação na vida cristã dos adultos batizados e não suficientemente evangelizados. Seja local para iniciar os não-batizados que, havendo escutado o querigma, querem abraçar a fé” 109.
91. A comunidade eclesial é o lugar de educação na fé110 para as crianças, adolescentes e jovens batizados, em um processo que as leve a completar sua iniciação cristã. A formação dos discípulos missionários, precisa articular fé e vida e integrar cinco aspectos fundamentais: o encontro com Jesus Cristo, a conversão, o discipulado, a comunhão e a missão111. O processo formativo se constitui no alimento da vida cristã e precisa estar voltado para a missão, que se concretiza em vida plena, em Jesus Cristo, para todos, em especial para os pobres. A formação não se reduz a cursos, pois integra a vivência comunitária, a participação nas celebrações e encontros, a interação com os meios de comunicação, assim como a inserção nas diferentes atividades pastorais e espaços de capacitação, movimentos e associações. A formação dos leigos e leigas precisa ser uma das prioridades da Igreja Particular, dado que é “um direito e dever para
109 DAp 293.
110 DAp 276.
111 DAp 278.
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todos”112. Torna-se mais efetiva e frutuosa quando integrada em um “projeto orgânico de formação”113, que contemple a formação básica de todos os membros da comunidade e a formação específica e especializada, sobretudo para aqueles que atuam na sociedade, onde apresenta-se o desafio de dar “testemunho de Cristo e dos valores do Reino”114.
4.3. Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral
92. A Igreja no Brasil quer investir cada vez mais na formação de todos os católicos para que, nas mais diversas formas de seguimento e missão, sejam agentes deste contato vivo, apaixonado e comprometido com a Palavra de Deus. Assim, como toda a Igreja, todos os serviços eclesiais precisam estar fundamentados e iluminados pela Palavra de Deus. Para que isto aconteça, algumas atitudes e vivências se tornam indispensáveis.
93. Em primeiro lugar, deparamo-nos com a necessidade de possuir a Bíblia. Nesse sentido, estimulem-se as iniciativas que permitam colocá-la nas mãos de todos, especialmente dos mais pobres. No entanto, não basta possuir. É necessário que a pessoa seja ajudada a ler corretamente a Escritura, “chegar à interpretação adequada dos textos bíblicos e empregá-los como mediação de diálogo com Jesus Cristo”115. O encontro com a Palavra viva exige a experiência de fé. Para isso, o católico precisa ser devidamente capacitado tanto no conteúdo bíblico quanto na pedagogia para iniciar e manter contato permanente com a Escritura. Trata-se, portanto, de incrementar a animação bíblica de toda a pastoral, com seus agentes e suas equipes, indispensável para que toda a vida da Igreja seja, ainda mais, uma “escola de interpretação ou conhecimento da Palavra, escola de comunhão e oração com a Palavra e escola de evangelização e proclamação da Palavra”116.
94. Em todos os níveis da ação evangelizadora - paroquial, regional ou diocesano - sejam criadas ou fortalecidas equipes de animação bíblica da pastoral, com a específica missão de propiciar meios de aproximação de cada pessoa à Palavra de Deus, conhecendo e interpretando-a corretamente, entrando em comunhão e oração com ela, e evangelizando e proclamando-a como vida em abundância para todos, uma vez que ela é o Verbo de Deus feito carne habitando no meio de nós, para nossa salvação. Por isso, as equipes de animação bíblica da pastoral precisam proporcionar retiros, cursos, encontros e subsídios para a leitura individual, familiar e em pequenos grupos da
112 CfL 57.
113 DAp 281.
114 Dap 216.
115 DAp 248; VD 73. Já a Dei Verbum do Vaticano II e, atualmente, todos os documentos eclesiais, corroborados pela Exortação apostólica Pós-sinodal Verbum Domini, falam da passagem de uma “pastoral bíblica” para uma “animação bíblica de toda a pastoral”.
116 DAp 248; VD 73.
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Palavra de Deus. A existência de um serviço especializado para a iluminação ou animação bíblica de toda a pastoral não exime, mas, pelo contrário, impulsiona a responsabilidade de todos os batizados.
95. Dentre as diferentes formas de animação bíblica da pastoral, sobressaem em particular aquelas que reúnem grupos de famílias, círculos bíblicos e pequenas comunidades em torno à meditação e vivência da Palavra 117, em estreita relação com seu contexto social. Merecem destaque e importância a contribuição dos cursos e escolas bíblicas, voltadas sobretudo aos leigos e leigas 118. Dado que a Bíblia encerra “valores antropológicos e filosóficos que influíram positivamente sobre toda a humanidade”, é importante favorecer o conhecimento da mesma “entre os agentes culturais, mesmo nos ambientes secularizados e entre os não crentes” 119, assim como nas escolas e universidades, sobretudo através da educação religiosa 120. Também se pode “estimular manifestações artísticas inspiradas na Sagrada Escritura, nas artes figurativas e na arquitetura, na literatura e na música”, acompanhada de uma “sólida formação dos artistas”121. Importa saber utilizar o espaço “dos novos meios de comunicação social, especialmente a internet com inúmeras redes sociais, que constituem um novo fórum onde fazer ressoar o Evangelho”, ainda com o cuidado para que o mundo virtual jamais substitua o mundo real, pois “o encontro pessoal permanece insubstituível” 122.
96. Dentre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura, existe uma privilegiada: o exercício de leitura orante da Sagrada Escritura123, usando métodos apropriados. Um método muito reconhecido pela Igreja é o da Lectio Divina com seus quatro momentos - leitura, meditação, oração e contemplação/ação – que favorece o encontro pessoal com Jesus Cristo, o Verbo de Deus.124 Seja, portanto, incentivada e reforçada a prática da leitura orante da Bíblia, conforme as orientações da Igreja, de modo que a Palavra de Deus seja conhecida e interpretada corretamente, proporcione comunhão e oração com o Senhor e ilumine a realidade vivida pelos participantes, animando-os e despertando-os para o compromisso evangélico a serviço do Reino de Deus.
117 VD 73.
118 VD, 75.
119 VD 110.
120 VD 111.
121 VD 112.
122 VD 113.
123 VD 87.
124 Cf. DAp 249.
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97. Investir, com afinco, na animação bíblica da pastoral e em agentes e equipes leva à instituição e formação continuada dos ministros e ministras da Palavra 125. Implica a “necessidade de cuidar, com uma adequada formação, o exercício do múnus de leitor na celebração litúrgica e de modo particular o ministério do leitorado, com capacitação não apenas bíblica e litúrgica, mas também técnica”126. Uma especial atenção merece a homilia que precisa atualizar a mensagem da Bíblia de tal modo que os fiéis sejam levados a descobrir a presença e a eficácia da Palavra de Deus no momento atual da sua vida 127.
4.4. Igreja: comunidade de comunidades
98. A experiência comunitária, quando efetivamente vivida à luz da Boa-Nova do Reino de Deus, conduz ao empenho para que a fraternidade e a união sejam assumidas em todas as instâncias da vida. Para isso, no interior da comunidade eclesial, o diálogo é o caminho permanente para a boa convivência e o aprofundamento da comunhão. A variedade de vocações, de carismas, espiritualidades e movimentos é uma riqueza e não motivo para competição, rejeição ou discriminação. Grande é o desafio da educação para a vivência da unidade na diversidade, fundada no princípio de que todos são irmãos e iguais em dignidade (Gl 3,28) 128. Quanto maior for a comunhão, tanto mais eficaz será o testemunho de fé da comunidade.
99. As paróquias têm um papel importante na vivência da fé. Para a maioria de nossos fiéis, é o único espaço de inserção na Igreja. Na maioria das vezes, a relação se restringe aos chamados serviços paroquiais, deixando insatisfeito um bom número de pessoas que buscam formas mais comunitárias de viver sua fé. Por isso, independente das inúmeras dificuldades, é urgente que a paróquia se torne, cada vez mais, comunidade de comunidades vivas e dinâmicas de discípulos missionários de Jesus Cristo.
100. Como afirma o Documento de Aparecida, as paróquias são “células vivas da Igreja e lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e a comunhão eclesial”129 mas, precisam de renovação e “reformulação de suas estruturas, para que sejam rede
125 Cf. PAULO VI. EN, 22; DAp 211 e 248.
126 VD 58.
127 cf. VD 59
128 Cf. CNBB. Doc. Vida e ministério dos presbíteros, n 142-144. São Paulo, Paulinas. 1981.
129 DAp 170.
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de comunidades e grupos”, capazes de propiciar a seus membros uma real experiência “de discípulos e missionários de Jesus Cristo, em comunhão”130.
101. Entre as formas de renovação da paróquia está a urgência de sua “setorização em unidades territoriais menores, com equipes próprias de animação e de coordenação que permitam maior proximidade com as pessoas e grupos que vivem na região”131. Sabemos que nem sempre é fácil passar de uma paróquia centralizada num único prédio, onde acontecem todas as atividades, a uma paróquia comunidade de comunidades espalhadas por todo seu território. Importa, porém, investir na descentralização, seja iniciando experiências significativas, seja reconhecendo, no dia-a-dia das comunidades, o que já existe. O importante é ter sempre em conta a advertência de Aparecida: ninguém pode se isentar de dar estes passos 132.
102. Fruto de longa experiência em muitas regiões do Brasil, destacam-se as CEBs, forma privilegiada de vivência comunitária da fé, inseridas no seio da sociedade em perspectiva profética. Para o Documento de Aparecida, elas têm sido verdadeiras escolas que formam cristãos comprometidos com sua fé, discípulos e missionários, como testemunhas de uma entrega generosa, até mesmo com o derramar do sangue de muitos membros seus. Elas resgatam a experiência das primeiras comunidades, conforme os Atos dos Apóstolos. A Conferência de Medellín reconheceu nelas a “célula inicial de estruturação eclesial e foco de fé e evangelização”. Elas permitem o povo chegar a um conhecimento maior e vivência da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços de leigos e leigas, à educação da fé dos adultos133, a um compromisso evangelizador e missionário entre os mais simples e afastados e são expressão visível da opção preferencial pelos pobres134.
103. “Junto com as CEBs, existem outras formas válidas de pequenas comunidades, e inclusive redes de comunidades, de movimentos, de grupos de vida, de oração e de reflexão da Palavra de Deus” 135. Em cada uma dessas formas de vida comunitária, “podemos ver a multiforme presença e ação santificadora do Espírito”136, nas quais também é possível experimentar a gratuidade dos relacionamentos e o compromisso missionário137.
130 DAp 172-173.
131 DAp 372; SD 58.
132 DAp 365.
133 Cf. DAp 178.
134 Cf. DAp 179.
135 DAp 180; aqui, “pequenas comunidades” são entendidas por “grupos eclesiais”.
136 DAp 312, citando o Papa BENTO XVI. DA: Discurso Inaugural, 5.
137 Cf. DAp 307.
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104. Para uma Igreja comunidade de comunidades, é imprescindível o empenho por uma efetiva participação de todos nos destinos da comunidade, pela diversidade de carismas, serviços e ministérios 138. Para isso, faz-se necessário promover:
a) A diversidade ministerial, na qual todos, trabalhando em comunhão, manifestam a única Igreja de Cristo,139 sejam eles leigos e leigas e ministros ordenados. Urge aos pastores abrir espaços de participação aos leigos e a confiar-lhes ministérios e responsabilidades, para que todos na Igreja vivam de maneira responsável seu compromisso cristão”.140 Entre as vocações laicais, é preciso valorizar especialmente as que brotam do matrimônio, como a de ser esposo e esposa, mãe, pai, filho e irmão. Não perder de vista, outrossim, que a missão fundamental dos leigos e das leigas é a presença e o testemunho na sociedade e na profissão.
b) O carisma da Vida Consagrada, em suas dimensões apostólica e contemplativa, presentes em fronteiras missionárias; inseridas junto aos pobres; atuantes no mundo da Educação, da Saúde e da Ação Social; orantes em Mosteiros e Carmelos, comprometidas a evangelizar por sua vida e missão.
c) A formação e funcionamento de comissões, assembléias pastorais e de conselhos, tanto no âmbito pastoral como no âmbito econômico-administrativo. Os leigos, co-responsáveis com o ministério ordenado, atuando nessas assembléias, conselhos e comissões, tornam-se cada vez mais envolvidos no planejamento, na execução e na avaliação de tudo que a comunidade vive e faz. Estes organismos são instrumentos que levam a uma valorização dos diferentes serviços de pastoral e podem ser um meio para evidenciar a necessidade de todos os membros da comunidade eclesial tornaram-se sujeitos co-responsáveis na ação evangelizadora como um todo.
d) A articulação das ações evangelizadoras, através da pastoral orgânica e de conjunto, evitando não apenas o contratestemunho da divisão, como a competição entre grupos. Somente a articulação da diversidade de carismas e iniciativas de evangelização, é capaz de efetivar a unidade. Instrumento privilegiado de uma pastoral orgânica e de conjunto é o planejamento, através da participação de todos os membros da comunidade eclesial na projeção da ação, tanto no processo de discernimento como na tomada de decisão.
138 Cf. DAp 162.
139 Cf. CNBB. Doc. Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas, nn. 77-79. São Paulo, Paulinas. 1999; DAp 211.
140 DAp 211.
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105. A efetivação de uma Igreja comunidade de comunidades com espírito missionário, manifesta-se também na bela experiência das paróquias-irmãs, dentro e fora da diocese, análoga ao projeto Igrejas-irmãs. Faz-se necessário estimular, sempre mais, com oportunas iniciativas, a partilha e comunhão dos recursos da Igreja no Brasil, desenvolvendo e ampliando o projeto “Igrejas Irmãs” nas Igrejas Particulares, nos regionais e em âmbito nacional, levando em conta a situação de grave necessidade de pessoal e de recursos financeiros nas regiões mais carentes do país. A região amazônica merece uma atenção e dedicação especial.
4.5. Igreja a serviço da vida plena para todos
106. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10) resume a missão de Jesus e, por extensão, também a missão da Igreja. Isso exige de todo cristão assumir atitudes,141 não apenas ao que se refere ao anúncio do imprescindível valor da vida, mas também através de práticas que ajudem a vida a desabrochar e florescer, em toda a sua plenitude. Em meio a um mundo marcado por tantos sinais de morte e inúmeras formas de exclusão, “a Igreja, em todos os seus grupos, movimentos e associações, animados por uma Pastoral Social estruturada, orgânica e integral”142, tem a importante missão de defender, cuidar e promover a vida, em todas as suas expressões.143
107. O serviço à vida começa pelo respeito à dignidade da pessoa humana, através de iniciativas como: a) defender e promover a dignidade da vida humana em todas as etapas da existência, desde a fecundação até a morte natural; b) tratar o ser humano como fim e não como meio, respeitando-o em tudo que lhe é próprio: corpo, espírito e liberdade; c) tratar todo ser humano sem preconceito nem discriminação, acolhendo, perdoando, recuperando a vida e a liberdade de cada pessoa, tendo presente as condições materiais, contextos históricos, sociais e culturais em que cada pessoa vive.
108. Um olhar especial merece a família, patrimônio da humanidade, lugar e escola de comunhão, primeiro local para a iniciação à vida cristã das crianças, no seio da qual, os pais são os primeiros catequistas144. Tamanha é sua importância que precisa ser considerada “um dos eixos transversais de toda a ação evangelizadora”145 e, portanto, respaldada por uma pastoral familiar
141 Cf. DAp 436.
142 DAp 401.
143 DAp 402.
144 Cf. DAp 118; 302.
145 DAp 435.
39
intensa, vigorosa e frutuosa146. A pastoral familiar poderá contribuir para que a família seja, de fato, lugar de realização humana, de santificação na experiência de paternidade, maternidade e filiação e da educação contínua e permanente da fé.
109. As crianças, adolescentes e jovens, que constituem uma parcela importante da população brasileira, precisam de maior atenção por parte de nossas comunidades eclesiais, pois são os mais expostos ao drama do abandono e ao perigo das drogas, da violência, da venda de armas, abuso sexual, bem como à falta de oportunidades e perspectivas de futuro. Além da pastoral da juventude e em sintonia com ela, é urgente uma pastoral infanto-juvenil mais consistente e efetiva em nossas Igrejas.
110. No serviço à vida, é necessário acompanhar as alegrias e preocupações dos trabalhadores e das trabalhadoras, fazendo-nos evangelicamente presentes nos locais de trabalho, nos sindicatos ou nas associações de classe e lazer. Em nossos dias, através das diversas pastorais e movimentos ligados ao mundo do trabalho, urge lutar contra o desemprego e o subemprego, criando ou apoiando alternativas de geração de renda, assim como a economia solidária, a agricultura familiar, a agroecologia, o consumo solidário, a segurança alimentar, as redes de trocas, aceso a crédito popular, trabalho coletivo e busca do desenvolvimento local sustentável e solidário.
111. Atenção especial merecem também os migrantes147 forçados pela busca de trabalho e moradia: a) os migrantes brasileiros no exterior, vivendo no meio de outras culturas e tradições, e que precisam de amparo, apoio e assistência religiosa; b) os migrantes sazonais, que constituem mão-de-obra barata e super-explorada pelo agronegócio em suas formas variadas; c) as vítimas do tráfico de pessoas seduzidas por propostas de trabalho que levam à exploração também sexual; d) os trabalhadores explorados pelos métodos de terceirização, vítimas de atravessadores de mão-de-obra; e) os novos migrantes estrangeiros em busca de sobrevivência em nossa pátria, muitos se encontrando em situação de não-cidadania e discriminação. É urgente o estabelecimento de estruturas nacionais e diocesanas destinadas não apenas a acompanhar os migrantes e refugiados, como também a empenhar-se junto aos organismos da sociedade civil, para que os governos tenham uma política migratória que leve em conta os direitos das pessoas em mobilidade.
112. No serviço à vida, cabe promover uma sociedade que respeite as diferenças, combatendo o preconceito e a discriminação nas mais diversas esferas, efetivando a convivência pacífica das diversas etnias, culturas e expressões religiosas, o respeito das legítimas diferenças. Torna-se urgente trabalhar pela criação e aplicação de mecanismos legais para o combate a qualquer
146 Cf. BENTO XVI. DAp, DI, 5.
147 CV 62.
40
forma de discriminação, mas sempre vigilantes a evitar a afirmação exasperada de direitos individuais e subjetivos148, bem como a ideologia do multiculturalismo relativista. A Igreja, como mãe, deve ser a primeira a se interessar pela defesa dos Direitos Humanos. Está atenta, porém, para que, nesta luta, não haja manipulações ou distorções prejudiciais à vida plena. A ética dos Direitos Humanos exige que se garanta a vida plena em todas as dimensões da pessoa e para todas as pessoas da sociedade.
113. Neste particular, cabe aos cristãos apoiar as iniciativas em prol da inclusão social e o reconhecimento dos direitos das populações indígena e africana.149 Como Igreja “advogada da justiça e dos pobres” 150, cabe-nos denunciar toda prática de discriminação e de racismo em suas diferentes expressões e apoiarmos as reivindicações pela defesa de seus territórios, na afirmação de seus direitos, cidadania, projetos próprios de desenvolvimento e consciência de suas culturas próprias151.
114. Importante campo de ação, hoje, é educar para a preservação da natureza e o cuidado com a ecologia humana, através de atitudes que respeitem a biodiversidade e de ações que zelem pelo meio ambiente152. Entre essas ações, destaca-se a preservação da água, patrimônio da humanidade, evitando sua privatização153, do solo e do ar. O esforço por maior crescimento econômico deve ser orientado para o desenvolvimento sustentável.
115. Incentive-se cada vez mais a participação social e política dos cristãos leigos e leigas nos diversos níveis e instituições, promovendo-se a formação permanente e ações concretas. Incentive-se a participação, ativa e consciente, nos Conselhos de Direitos. Quer promovendo, quer se unindo a outras iniciativas, incentive-se a participação em campanhas e outras iniciativas que busquem efetivar, com gestos concretos, a convivência pacífica, em meio a uma sociedade marcada por violência, que banaliza a vida. Sobretudo no mundo de hoje, com a crise da democracia representativa, cresce a importância e, portanto, a necessidade da colaboração da Igreja, no fortalecimento da sociedade civil154, na participação em iniciativas de controle social, bem como
148 Cf. DAp 47.
149 Cf. CNBB. Doc. Brasil – 500 anos: Diálogo e Esperança, n17-22 e 58 e 59. São Paulo, Paulinas. 2000.
150 Bento XVI, DAp, DI.4
151 Cf. DAp 529-533.
152 Cf. CV 48-49.
153 Cf. CNBB. Texto-base da Campanha da Fraternidade 2004, com o lema “Água fonte da vida”.
154 CV 39.
41
no serviço em prol da unidade e fraternidade dos povos, especialmente da América Latina e do Caribe, como sinal efetivo de paz e reconciliação155.
116. Como cidadãos cristãos, cabe empenhar-nos na busca de políticas públicas que ofereçam as condições necessárias ao bem-estar de pessoas, famílias e povos. Urge às comunidades e demais instituições católicas, colaborar ou agir em parceria com outras instituições privadas ou públicas,156 com os movimentos populares e outras entidades da sociedade civil, no sentido de reivindicar democraticamente a implantação e a execução de políticas públicas voltadas para a defesa e promoção da vida e do bem comum, segundo a Doutrina Social da Igreja. Urge uma presença mais efetiva da Igreja em regiões suburbanas, especialmente nas favelas. Especial atenção precisa ser dada à pastoral carcerária, pois ela é uma mediação importante para uma presença eficaz da Igreja junto à numerosa população reclusa em condições desumanas.
117. Tarefa de grande importância é a formação de pensadores e pessoas que estejam em níveis de decisão, evangelizando, com especial atenção e empenho, os “novos areópagos”157. Um dos primeiros areópagos é o mundo universitário. Uma consistente pastoral universitária é necessidade em quase todas as Igrejas Particulares. Quanto mais nos empenharmos em conscientizar e capacitar nossos leigos a partir de sua própria profissão, no empenho do diálogo fé e razão, estaremos animando sua vocação no mundo e, consequentemente, auxiliando na melhoria da sociedade. Outro urgente areópago diz respeito ao mundo da comunicação. Tornam-se inadiáveis mais investimentos tecnológicos e qualificação de pessoal, para uso adequado dos meios de comunicação, uma ousada pastoral da comunicação, garantindo a presença da Igreja no diálogo com a mentalidade e cultura contemporâneas, à luz dos valores do Evangelho. Um terceiro areópago liga-se à presença pastoral junto aos empresários, aos políticos, aos formadores de opinião no mundo do trabalho, dirigentes sindicais e comunitários, disponibilizando e formando pessoas que se dediquem a ser presença significativa nestes meios. Por fim, cabe incentivar, também, uma Pastoral da Cultura, viva e atuante, através de Centros Culturais católicos e de projetos que visem atingir os núcleos de criação e difusão cultural 158.
118. Num contexto cultural cada dia mais marcado pelo ceticismo diante do conhecimento da verdade em si e impregnado por sinais evidentes de irracionalidade, também midiática, a evangelização assume o desafio de aproximar a fé e a razão, através do diálogo atento, atualizado e corajoso com as pessoas de hoje.
155 Cf. DAp 520.
156 Cf. DAp 384.
157 Cf. DAp 491.
158 Cf. DAp 491.
42
119. Este diálogo se faz ainda mais urgente no contexto eclesial da “nova evangelização, mantendo e proclamando com firmeza os elementos essenciais da fé como adesão intelectual à Revelação 159, num ambiente fortemente carregado de sentimentalismos efêmeros e emocionalismo insaciável” 160,
120. O empenho da Igreja pela promoção humana e pela justiça social exige, também, um amplo e decidido esforço para educar a comunidade eclesial como um todo no conhecimento e aplicação da Doutrina Social da Igreja como decorrência imprescindível da própria fé cristã. Em nosso tempo, cada vez mais, leigos e leigas se interessam por sua formação teológica, também na Doutrina Social da Igreja, tornando-se verdadeiros missionários da caridade no seio da sociedade secular161. A ética social cristã não é opção para alguns, mas exigência para todos. Ela é contribuição própria da Igreja para a construção de uma sociedade justa e solidária e precisa ocupar lugar de destaque em nossos programas de formação, planos de pastoral e na própria pregação inspirada pelo Evangelho162.
159 Cf. DV 5
160 Cf. DV 5.
161 Cf. DAp 99f.
162 Cf. CNBB. Doc. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 1999-2002, 197. São Paulo, Paulinas. 1999.
43
V
INDICAÇÕES DE OPERACIONALIZAÇÃO
121. Para uma ação evangelizadora eficaz, é preciso ir além da definição de diretrizes. É preciso chegar a “indicações programáticas concretas” 163, através da elaboração de um plano diocesano de pastoral e, em sintonia com este, de planos específicos em todos os âmbitos e serviços eclesiais, imprescindível para uma pastoral orgânica e de conjunto. Do contrário, as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora correm os riscos da inoperância e irrelevância, com pouco ou nenhum impacto na vida das Igrejas Particulares, para as quais elas querem ser uma proposta e um serviço.
122. Sem um esforço conjunto das Igrejas Particulares, é praticamente impossível responder aos desafios da realidade e às exigências da evangelização, hoje. A operacionalização das Diretrizes Gerais exige um processo de planejamento no interior das dioceses e entre elas, concretamente nos Regionais da CNBB. Como nos lembra Puebla, “a ação pastoral planejada é a resposta específica, consciente e intencional, às necessidades da evangelização”, sempre que realizada “em um processo de participação de todos os níveis das comunidades e pessoas interessadas”. O recurso “à metodologia de análise da realidade e à reflexão sobre esta realidade à luz do Evangelho”, fornece a base segura para a definição “dos objetivos e dos meios mais aptos”, na realização da ação evangelizadora164.
5.1. O plano como fruto de um processo de planejamento
123. Planejar é pensar a ação antes, durante e depois dela. Um bom plano, que contribui para a ação evangelizadora, é sempre fruto de um processo de planejamento, com a participação direta ou representativa de toda a comunidade eclesial, em cujo esforço de todos, incluídos os leigos e leigas, têm o direito e o compromisso “de participar do discernimento, da tomada de decisões e da execução”165. Uma abertura às instituições públicas e privadas, especializadas em planejamento, pode facilitar a realização de planos pastorais eficazes.
124. Todo processo precisa ser preparado. Uma ação que não tiver um antes, não terá um depois. Para desencadear um processo de planejamento pastoral, sua preparação começa por uma
163 Cf. NMI 29.
164 DP 1307.
165 DAp 371.
44
sensibilização dos membros da comunidade eclesial sobre a importância da participação de todos, resposta à exigência de uma Igreja “comunhão e participação”166, com o “protagonismo dos leigos”167, em especial “das mulheres”168 e dos jovens. Na sequência, está a necessidade da constituição dos organismos de discernimento e tomada de decisões nos diversos âmbitos eclesiais, como as assembleias de pastoral, os conselhos, as comissões e equipes de coordenação dos diferentes serviços.
125. A preparação do processo implica, também, na definição conjunta de seus passos metodológicos, fator capaz de lhe propiciar credibilidade e coesão aos seus integrantes. Dado que a ação pastoral, perpassada pela graça e levada a cabo sob o protagonismo do Espírito, não deixa de ser também uma ação humana, sujeita às contingências da história, uma boa metodologia de planejamento precisa levar em conta o estatuto da ação. A ação comporta sua própria racionalidade, seus passos metodológicos.
5.2. Passos metodológicos
126. Para se realizar um efetivo processo de planejamento, são necessários pelo menos sete passos. Quando assumidos e levados a cabo por todos os integrantes do processo, em espírito de comunhão e participação, inevitavelmente vão causar um impacto sobre a realidade.
Primeiro passo: onde estamos
127. Para desencadear processos, o melhor ponto de partida é sempre aquele onde nos encontramos. Trata-se de colocar os pés no chão. Se ignoramos a realidade, não evangelizamos. As boas respostas pastorais dependem da identificação das verdadeiras necessidades de evangelização. O Capítulo II ofereceu-nos elementos para uma leitura da realidade sócio-cultural e religiosa-eclesial na atualidade. No âmbito da sociedade, é importante levantar dados pelo menos sobre a situação cultural, econômica, política e ecológica. No âmbito religioso, a eficácia da ação pastoral depende também do conhecimento da situação da experiência religiosa e eclesial no próprio contexto. Também não esquecer que para saber onde estamos, o processo de conhecimento da própria situação começa com uma avaliação da própria caminhada ou do plano de pastoral vigente.
166 Cf. DAp 213
167 Cf. SD 97.
168 Cf. DAp 458
45
Segundo passo: onde precisamos estar
128. Na ação evangelizadora, o ponto de chegada está em olhar para o horizonte do Evangelho, mostrado em Jesus Cristo e, Nele, a presença do Reino de Deus, na precariedade da história. A realidade histórica, por mais dura e desconcertante que seja, não tem a última palavra. Nossa esperança se funda sobre Alguém em quem a vida não conhece ocaso – o Senhor Ressuscitado. O Capítulo I nos mostrou a missão da Igreja: caminhar como discípulos missionários de Jesus Cristo, buscando continuar sua obra redentora, na gratuidade e na alteridade.
129. A vida e a missão do discípulo missionário de Jesus Cristo, segundo as Diretrizes da Ação Evangelizadora no Brasil nos últimos tempos, consiste no exercício do tríplice múnus, recebido no Batismo: ministério da Palavra, ministério da Liturgia, ministério da Caridade169.
a) Serviço da Palavra: a proclamação da Palavra de Deus pela Igreja é decisiva para a fé do cristão, já que ela possibilita o acolhimento livre do anúncio salvífico da pessoa de Cristo, acolhimento esse possibilitado pela atuação do Espírito Santo (1Cor 12,3). É através do querigma que acontece um autêntico encontro pessoal com Jesus Cristo. Por isso, ele deve ser uma oferta imprescindível a todos 170.
b) Serviço da Liturgia: a liturgia ocupa, na ação evangelizadora da Igreja, um lugar essencial. Conforme o Concílio Vaticano II, ela é “o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde emana toda a sua força”.171 Nela, o discípulo realiza o mais íntimo encontro com o seu Senhor e, dela, recebe a motivação e a força máximas para a sua missão na Igreja e no mundo.
c) Serviço da Caridade: se as fontes da vida da Igreja são a Palavra e o Sacramento, o centro da vida cristã 172 é a caridade, o amor-doação, o amor que vem de Deus mesmo (Rm 5,5) e que o apóstolo Paulo aponta como o mais alto dos dons (1Cor 12,31). “Toda a atividade da Igreja é a manifestação de um amor que procura o bem integral do ser humano”173, amor esse que “é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos”174. O amor cristão tem duas faces inseparáveis: faz brotar e crescer a comunhão fraterna
169 O Concílio Vaticano II descreveu, em vários lugares (cf. Lumen Gentium 25-27; 34-36; Presbyterorum Ordinis 4-6; etc.), o ministério da Igreja como sendo “profético, sacerdotal e régio” ou também como “múnus” de ensinar, santificar e governar. Esta descrição se baseia em figuras distintas na Antiga Aliança (profetas, sacerdotes, reis), que foram reunidas em Cristo, reconhecido pela fé como “sacerdote, profeta e rei”.
170 Cf. DAp 226a.
171 SC 10.
172 BENTO XVI. DCE, 1.
173 BENTO XVI. DCE, 19.
174 BENTO XVI. DCE, 31.
46
entre os que acolheram a Palavra do Evangelho e leva ao serviço a todos, particularmente aos mais dos pobres (At 3,1-9; 6,1-6; 9,36-42; 20,33-35)175.
130. A vivência do tríplice múnus, que é a vocação, carisma e missão de cada batizado, conforme as Diretrizes da Ação Evangelizadora no Brasil têm indicado nos últimos tempos, se dá no âmbito da pessoa, no âmbito da comunidade e no âmbito da sociedade176. Eles constituem tanto o espaço como as realidades onde o Evangelho precisa ser encarnado. Pessoas evangelizadas, ao se fazerem dom, transbordam na comunidade, que, por sua vez, enquanto comunidade eclesial, existe para o serviço de Deus na sociedade.
a) Âmbito da pessoa: a fé cristã é, antes de tudo, adesão pessoal à pessoa de Jesus Cristo e ao seu Evangelho, acolhida do dom gratuito que vem de Deus. É a pessoa o sujeito de toda a realidade que lhe circunda, o ser capaz de descobrir seu sentido e governá-la (Gn 2,20). Por isso, não podemos deixar de reconhecer e valorizar cada pessoa, em sua liberdade, autonomia, responsabilidade e dignidade. A ação evangelizadora implica, antes de tudo, em respeitar, defender e promover a dignidade de todas as pessoas.
b) Âmbito da comunidade: a fecundidade da comunhão que vem de Deus nos impulsiona para a vida em comunidade e para a transformação da sociedade.177 Criada à imagem e semelhança do Deus-Trindade, do Deus que é amor e comunhão, a pessoa só se realiza plenamente à medida que se faz dom numa experiência concreta de comunidade. Em nossos dias, é, portanto, indispensável proclamar que “Jesus convoca a viver e caminhar juntos. A vida cristã só se aprofunda e se desenvolve na comunhão fraterna”178, como Igreja. É preciso estar preparado para gerar o fascínio pela vida fraterna no seio de uma comunidade eclesial, acolher os que chegam, permitir-lhes o amadurecimento na fé e sair em missão179.
c) Âmbito da sociedade: diz o Vaticano II que a Igreja não é deste mundo, mas está no mundo e existe para a salvação do mundo180. Por isso, diz o Documento de Aparecida, que a Igreja é chamada a ser sacramento de amor, de solidariedade e de justiça entre
175 Cf. NNI 49-53; DAp 161.
176 Esta perspectiva foi adotada na análise da realidade e nas orientações práticas do doc. 45 da CNBB, Diretrizes Gerais da Ação Pastoral 1991-1994; cf. especialmente os capítulos III e IV.
177 DP 327.
178 DAp 110.
179 Cf. DAp 159.
180 LG 5.
47
nossos povos181. O compromisso social, pois, tem sua raiz na própria fé. O interesse autêntico e sincero pelos problemas da sociedade nasce da solidariedade para com as pessoas182 e do encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo. É sinal privilegiado do seguimento daquele que veio para servir e não para ser servido (Mc 10,45), devendo ser manifestado por toda a comunidade eclesial, e não apenas por algum grupo ou alguma pastoral social 183. A sociedade civil é também lugar de missão.
Terceiro passo: nossas urgências pastorais
131. Debruçar-se sobre a realidade sócio-cultural e religioso-eclesial, à luz do horizonte da fé cristã, nos leva a identificar algumas urgências pastorais no contexto atual. No Capítulo III foram indicadas cinco: Igreja em estado de missão, Igreja: casa da iniciação à vida cristã, animação bíblica da pastoral e de toda a vida, Igreja comunidade de comunidades e Igreja a serviço da vida plena. No processo de planejamento, cada Igreja Particular irá averiguar em que medida estas urgências correspondem aos desafios reais de seu contexto e se alguma outra em particular pode ser somada a elas.
132. Os resultados almejados por um processo de evangelização estão registrados nos objetivos: no objetivo geral e nos objetivos específicos. No espírito de busca de uma vivência cada vez maior da comunhão entre as Igrejas Particulares e de efetivação da pastoral orgânica e de conjunto, as Diretrizes da Ação Evangelizadora no Brasil propõem o Objetivo Geral. À luz dele, a comunhão eclesial interpela e estimula cada Igreja Particular a elaborar seus próprios objetivos e planos pastorais, sem prejuízo de sua autonomia, em sintonia com os planos pastorais do Conselho Episcopal Regional e as prioridades da Assembléia Regional de Pastoral.
Quinto passo: como vamos agir
133. Tanto a unidade eclesial quanto a eficácia na obra evangelizadora, exigem critérios comuns de ação. Historicamente, as Diretrizes da Ação Evangelizadora no Brasil têm oferecido alguns referenciais, que se mostraram muito operacionais. Por algumas décadas, à luz do Concílio Vaticano II, foram sugeridas as seis dimensões da ação pastoral: dimensão comunitário-participativa, dimensão missionária, dimensão bíblico-catequética, dimensão litúrgica, dimensão ecumênica e do diálogo inter-religioso, dimensão sócio-transformadora. Nos últimos tempos, sempre no mesmo espírito e inspiradas na Evangelii Nuntiandi, as Diretrizes sugeriram as quatro exigências da ação evangelizadora: serviço, diálogo, anúncio e testemunho da comunhão.
181 Cf. Dap 395; 396.
182 Cf. GS 1.
183 Cf. DAp 391.
48
134. São dois critérios praticamente equivalentes, tal como faziam referência as Diretrizes promulgadas para o quatriênio 2003-2006: “As exigências intrínsecas da evangelização, agora descritas, correspondem fundamentalmente às seis linhas de ação ou dimensões adotadas pela CNBB no Plano de Pastoral de Conjunto (1966-1970): - o serviço se concretiza especialmente na dimensão sócio-transformadora (linha 6); - o diálogo se concretiza na dimensão ecumênica e do diálogo religioso (linha 5); - o anúncio se concretiza na dimensão missionária (linha 2); - o testemunho da comunhão se concretiza na dimensão comunitário-participativa (linha 1), que se alimenta nas fontes da Palavra (dimensão bíblico-catequética - linha 3) e da liturgia (dimensão litúrgica - linha 4). As exigências da evangelização acentuam o aspecto missionário da vida da Igreja”184.
135. Quanto às quatro exigências, testemunho de serviço e anúncio são duas formas, complementares e conexas, da missão cristã185. Em primeiro lugar, o discípulo missionário deverá buscar inserir-se no contexto de seus interlocutores, reconhecer seus valores e se fazer acolher, mostrando a disposição ao serviço e à solidariedade para com eles. Isso já é um sinal do Cristo que vem “não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida” (Mc 10,45). Este testemunho provocará interrogações, abrindo as portas para um diálogo, que tornará possível um anúncio do Evangelho que possa ser retamente entendido e acolhido, suscitando a fé em Cristo 186. Unida pela fé, nascerá uma nova comunidade cristã, chamada a dar testemunho dos valores em que crê, celebra e vive na fraternidade e na fidelidade ao Evangelho.
Sexto passo: o que vamos fazer
136. “O que não é assumido, não é redimido”, disse Sto. Irineu de Lião. Trata-se da intervenção na realidade apreendida à luz da fé, buscando responder às urgências pastorais, segundo os objetivos e critérios de ação estabelecidos. É o momento da programação, que é muito mais do que um cronograma de ações, um elenco de atividades pontuais e dispersas. Para que gerem processo, precisam ser definidas segundo um curso de ação, dado que determinadas ações, para serem realizadas, dependem da realização prévia de outras. Agrupar as ações em programas, comuns e específicos, ajuda evitar a dispersão: os programas conjuntos reúnem ações que dizem respeito a todos e, os específicos, as ações de serviços de pastoral determinados e organismos. Os programas aterrissam na prática, através de projetos, que podem ser pensados em suas metas (o quê), passos (como), responsáveis (quem), recursos (com quê), data (quando) e lugar (onde).
184 cf. CNBB, doc. 71, Diretrizes... 2003-2006, 15, nota 4.
185 EN 21-22.
186 cf. JOÃO PAULO II, Redemptoris Missio, 44, que cita PAULO VI, Evangelii Nuntiandi, 27.
49
Sétimo passo: a renovação das estruturas
137. “Vinho novo, odres novos” (Mt 9,17): mudadas as ações, é preciso igualmente mudar as estruturas que lhe dão suporte. É sempre o último passo de um processo de planejamento, mas imprescindível. Se não renovamos as estruturas e a própria instituição (Ecclesia semper reformanda)187 o processo de mudanças ao qual as ações se propõem perseguir estará prejudicado, quando não estagnado.
138. A comunidade eclesial, necessita pensar aqueles organismos de articulação da ação (assembleias, conselhos), mecanismos de coordenação (equipes de coordenação de âmbitos eclesiais e de serviços específicos) e primeiros responsáveis (Bispo, pároco, coordenadores), discriminando suas respectivas funções. Neste particular, à luz do apelo do Documento de Aparecida em prol de uma Igreja em estado permanente de missão, apresenta-se o grande desafio de renovação da paróquia, através de sua setorização em unidades menores, tendo à frente uma equipe de coordenação integrada por leigos e leigas e, dentro destes setores, a criação de comunidades de famílias 188.
187 Cf. LG 9 ; GS 21,43 ; UR 4 ; PO 12 ; EN 15.
188 Cf. DAp 372.
50
CONCLUSÃO
COMPROMISSO DE UNIDADE NA MISSÃO
139. Estas Diretrizes apontam para o compromisso evangelizador da Igreja no Brasil para o início da segunda década do século XXI. Manifestam, através das cinco urgências, o caminho discernido, à luz do Espírito Santo, como resposta a este tempo de profundas transformações. Em continuidade com as orientações de toda a Igreja, elas assumem o mais profundo espírito do Concílio Vaticano II, recolhendo a riqueza existente no Magistério pós-conciliar. Acolhe, de modo especial, as Conclusões da Conferência de Aparecida, no desejo de que elas se concretizem em ações evangelizadoras capazes de suscitar o fascínio por Jesus Cristo e o compromisso pelo Reino de Deus e sua Justiça.
140. Elas representam um forte apelo à efetiva unidade. O novo Povo de Deus, ao mesmo tempo em que respeita a diversidade, testemunha igualmente a unidade189. Assim, a Igreja no Brasil tornar-se-á, cada dia mais, imagem do Deus-Trindade, sinal escatológico do Reino definitivo, quando Cristo será tudo em todos no amor (1 Cor 15,28). O testemunho da unidade (Jo 17,21), indispensável em todos os tempos e lugares, torna-se hoje, ainda mais importante, para que se possa profeticamente interpelar à gratuidade e à alteridade. Através das Diretrizes, a Igreja no Brasil assume seu compromisso de fidelidade a Jesus Cristo e seu mandato missionário (Mt 28,18ss), discernindo os sinais dos tempos e os desafios específicos para a nossa Evangelização.
141. Iluminada pela Palavra, alimentada pela Eucaristia, animada e dinamizada pela caridade de Cristo, interpelada pelo testemunho de tantos santos e santas, que responderam como discípulos missionários em seu tempo e contexto, a Igreja no Brasil, deseja, através das presentes Diretrizes da Ação Evangelizadora, ser expressão da encarnação do Reino de Deus no hoje de nossa história.
Maria foi quem melhor assimilou e viveu o Evangelho, por isso, ela é modelo de ação evangelizadora para a Igreja. Sua vida simples, marcada pela obediência da fé, nos acerca a seu Filho e nos faz verdadeiros discípulos missionários.
Que a Mãe de Deus e nossa, Senhora Aparecida, nos acompanhe com sua intercessão e exemplo, para que façamos tudo aquilo que seu Filho nos disser.
189 Cf. LG 13.
51
SIGLAS
CV – Papa Bento XVI, Encíclica Caritas in Veritate
DAp – Documento de Aparecida
DCE – Papa Bento XVI, Encíclica Deus Charitas est
DI – Papa Bento XVI, Discurso Inaugural à Conferência de Aparecida
EN – Papa Paulo VI, Exortação Apostólica Evangellii Nuntiandi
EV – Papa João Paulo II, Encíclica Evangellium Vitae
GS – Constituição Pastoral Gaudium et Spes
LG – Constituição Dogmática Lúmen Gentium
NMI – Papa João Paulo II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, 29
DP –Documento de Puebla
RM – Papa João Paulo II, Encíclica Redemptoris Missio
SC – Constituição Sacrosanctum Concilium
SD – Documento de Santo Domingo
UR – Decreto Unitatis Redintegratio
VD – Papa Bento XVI, Exortação Apostólica Verbum Domini

 

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